O acidente

Havia qualquer coisa de estranho que o deixava sempre intrigado. Não era o cheiro a sopa requentada e muito menos a cerveja que se evaporava nas garrafas. Era outra coisa qualquer que não sabia explicar. Entranhava-se nos poros e por mais que se lavasse continuava intenso. Era tão profundo que até se entranhava na roupa e o acompanhava para todo o lado.

Era mais uma manhã, igual a todas as outras e o despertador cumpriu a sua função. Levantou-se contrariado e foi até à cozinha. Estava tudo na mesma, mas aquela sensação estranha voltou a assombrá-lo. Que irritante! Olhou à volta, mas não conseguir entender o que lhe despertava a atenção. Realmente era intrigante.

O pequeno almoço soube ao do costume e depois da última vista de olhos, saiu de casa com a pasta debaixo do braço. O que fazia era tão maquinal que nem tinha noção do que era. Ia tão distraído que nem reparou no semáforo e o barulho dos travões despertou-o para a realidade. Bum!

O coração parecia querer saltar pelo peito e teve que se sentar no chão. Várias pessoas vieram em seu auxílio, mas ele estava bem. A pasta estava a seu lado, aberta, com os papéis todos espalhados. Recolheu-os e, com todos os cuidados, voltou a arrumá-los na pasta. “Não é nada, fiquem descansados. Tudo está bem.”

Quis levantar-se, mas não conseguiu. “Uma ambulância, chamem uma ambulância que o senhor não se está a sentir bem”. A cabeça começou a andar à roda e quando acordou estava no hospital. O bip da máquina sobressaltou-o. O que era aquilo? Outra vez a sensação estranha. Muito estranha mesmo.

“Que aconteceu? Onde estou?” Depois de o terem informado do ocorrido perguntou: “Quem sou eu?” Perda de memória. Tão típico. O caso parecia complicado. Tinha perdido a memória. A pasta estava a seu lado, mas era muda. Dias depois levantou-se da cama e foi andar no corredor. Tinha esperança que a caminhada lhe desse lucidez e memória. De um lado para o outro e nada. Tudo se mantinha inalterável.

Olhava para todos os lados, mas não encontrava nenhuma referência. Era irreal e absurdo. Nada. Nem o seu nome sabia. Na confusão do acidente a carteira tinha caído e alguém se devia ter apropriado dela. Duas semanas depois estava bem fisicamente e não havia motivo para ficar internado. Não tinha para onde ir, não sabia quem era nem como iria sobreviver.

Decidiu abrir a pasta e ler todos os documentos que ela continha. Eram Certidões de Óbito assinadas por alguém cuja letra era impossível de ler. Típico dos médicos. Mas que raio estava aquilo ali? Não teria sido engano no hospital? Aquilo não lhe dizia nada. Que estranho. Que raio de coisa lhe estava a acontecer?

Subitamente sentiu um cheiro que lhe pareceu familiar. Sopa. Tinha recuperado o apetite. Ainda bem. No bolso do casaco tinha encontrado uma nota de 50 euros. Boa! Ia comer mesmo ali, naquele pequeno restaurante. Pareceu-lhe asseado e acolhedor. Estava com muitos clientes. Bom sinal. Aquele cheiro era mesmo tentador.

Entrou e viu uma mesa que lhe pareceu simpática. Era hora de movimento, mas os empregados estavam habituados. “Que vai ser?” Pediu o que quis e quando estava a olhar para a toalha, uma imagem assaltou a sua mente: o carro contra ele. Pois era. Como é que ele não se tinha desviado? No que estaria a pensar?

Deu um pulo e sem se aperceber deixou cair a pasta no chão. Esta abriu-se e os papéis saíram todos. Baixou-se para os apanhar e, subitamente, uma voz obrigou-o a levantar a cabeça. Soou-lhe bem familiar e uma cara muito redonda e zangada olhava para ele com ar de pouco amigos. Aqueles olhos eram facas que se atravessavam na sua alma.

“Ó Dr. onde é que esteve estes dias todos? Dá comigo em doida! As Certidões onde estão? Temos carradas de mortos por enterrar! Porta-se pior que uma criança! Já temos as gavetas todas cheias. Lá porque estão mortos não quer dizer que não merecem respeito. Valha-me Deus que nunca mais aprende. Coma que temos muito que fazer!”

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