Eterno desconvidado

Hoje, quando a minha raiva chegou, perguntei-lhe o que queria de mim. Pedi para se sentar, ofereci-lhe um café.

O tempo não estava agradável lá fora e já que me apareceu em casa sem avisar da possibilidade de visita, achei que mais valia, de uma vez por todas, escutar o que tinha para me contar.

Fechei os olhos e senti-a. Sem julgamentos nem expectativas. Percebi que a única forma de se ir embora seria ouvi-la, sem preconceitos. Então escutei o que ela tinha para me contar.

Contou-me que, ao longo do tempo, os nossos corpos se enchem de memórias. Que temos tendência a apagar.

Descreveu-me que estamos ligados a um todo. Que somos um e que essa unidade é maior do que o próprio cosmos, que a própria vida. Que é tão maior que não temos sequer discernimento para avaliar tal dimensão.

Que esse todo é feito de pequenas intensidades que vamos imprimindo à vida. Que quanto mais nos percebermos, maior a impressão que deixamos ao longo do caminho. Porque as realidades são traduzidas no quanto fazemos por nós, que atingimos tudo e toda a gente, sem sequer termos a mais pequenina percepção.

Que jamais podemos perder a capacidade de sentir. Que na evolução daquilo para o qual se caminha, o coração tem de estar sempre presente por mais forte ou grandiosa que seja qualquer tecnologia.

Em trejeito de lucidez e centramento, a minha raiva foi-se desvanecendo e deu lugar a algo muito maior. Continuou a explicar-me. Que a forma mais grandiosa de revolta e de mudança de qualquer sistema será sempre o amor. Que quando compreendesse esta chave, a humanidade se alcançaria em pleno.

O amor, explicou-me a raiva, não permite que se morra sozinho. Não consente que um abraço seja inferior a qualquer cura. Oferece-nos a leveza de caminhar, lado a lado com medos, bloqueios e anseios e, acima de tudo, mostra-nos que a única forma de manifesto é em plena liberdade.

A dada altura, percebi que a minha raiva estava quase de partida. A sua visita estava a chegar ao fim. Por isso, confessei que sentia um vazio muito grande. Talvez, por isso, me tivesse visitado.

Não se foi embora enquanto não finalizou. Mencionou-me que os vazios são necessários. Quando os sentimos, sabemos o quanto estamos longe de nós próprios. Que às vezes usamos os outros para não enfrentarmos os nossos próprios fantasmas.

Despedi-me dela com um abraço, sem medos. Respondeu-me, por fim, que não me preocupasse: volta e meia, voltaria para me visitar.

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