Era uma sexta-feira 13. Viana do Castelo estava coberta por um ténue manto de nevoeiro. A chuva não cessava, típico do mês de Dezembro, não fosse o Minho – verde. Nos rostos dos vianenses notava-se alguma inquietação. A continuar assim, a manifestação agendada para a tarde seria um fracasso. As pessoas já andam desacreditadas. “Manifestações… Este Governo faz o que quer”, ouve-se pela cidade.
As horas passam. Há quem timidamente se vá aglomerando junto aos comércios para se abrigar da chuva, que teima em não ir embora. Manuel Oliveira, nos seus 72 anos de vida, segura o guarda-chuva, sempre com os olhos postos na Praça da República, que será palco dali a uma hora de mais uma manifestação pela sobrevivência dos Estaleiros Navais. Não vai ficar. “O Governo decidiu assim, não há nada a fazer. Há uma semana atrás, esta Praça estava cheia de gente. Não vale a pena”, diz. Trabalhou durante sete anos, naquela que é considerada por muitos como a empresa pilar da cidade. Hoje, olhando para trás, solta que a sua sorte foi ter emigrado para França. Um sobrinho seu ficou. Uma vida inteira dedicada à construção naval. Desde os 16 que por lá anda, hoje tem 56 e há 10 que é seguido por um psicólogo. “Aonde se vai empregar? É novo para a reforma e é velho para trabalhar”, lamenta.
Manuel sabe que não são só os trabalhadores que estão a sofrer, é a cidade inteira. “Não é solução. É o cúmulo. Já há muita gente no fundo de desemprego, com isto ainda vai haver mais gente. A solução deveria ser continuar a construir, a reparar, dava muito rendimento à cidade. Falam que a Martifer está num buraco, quer dizer que agora vão-se meter noutro buraco? Não há futuro. Morrem os Estaleiros, morre a cidade. Muitos comerciantes vão fechar as portas. Já há inclusive restaurantes a dizer que, se isto for para a frente, fecham o negócio”.
A chuva miudinha continua. No outro lado, no vistoso edifício dos Antigos Paços do Concelho, encontra-se José Rosa de 76 anos, conhecido por “Samoca”. Parou para observar as movimentações na Praça. Está solidário para com a dor daqueles que minutos mais tarde iriam gritar até ficar sem voz. Não fosse ele, como se orgulha em dizer, filho do primeiro vianense a trabalhar nos Estaleiros. A própria alcunha advém dele. “Um dos melhores ferreiros mecânicos de Viana do Castelo”. Foi depois da Segunda Guerra Mundial, em 1946, que começou a sua jornada na empresa, pela qual ganhou carinho. Foram duas décadas dedicadas à construção naval. “Uma vida”. Mesmo depois de a abandonar para trabalhar por conta própria, o seu pai continuou ligado à empresa. Ele próprio foi, durante 12 anos, motorista da indústria de bacalhau. “Se não fossem os Estaleiros, não havia nada”.
A realidade de hoje é uma realidade que se vinha a arrastar há muito tempo, a diferença é que “com a crise arrebentou mesmo. Agora sem a Portucel não há nada, até a Praça de Touros se foi. Contaram-me há bocado que hoje rescindiram o contrato oito obreiros. O governo deveria investir. Ninguém anda a dormir, dizem que vão empregar alguns, mas a verdade é que quem fica é quem tem padrinho, o resto vai embora”. Assim, “Samoca” entre lamentos também se foi embora, deixando para trás uma Praça cada vez mais preenchida.
À espreita na esquina, o dono de um quiosque lá vai dizendo, sempre muito atento para quem passa na rua, que “a culpa é de todos. Eles não gostam que diga isto. Mas, sabe menina, nos últimos cinco anos, vendi muitos baralhos de cartas para a malta que lá trabalha. Eu com este negócio conheço muita gente. Não tinham trabalho e tinham que se entreter com alguma coisa.” Num tom ainda mais baixo e sempre a olhar para todos os lados, continua, afirmando que “ninguém é santo nesta história. Ninguém. Há muita malta que construiu as casas graças aos Estaleiros. Até tiveram que contratar seguranças para os revistar ao fim do dia”. Já a fugir para dentro do quiosque. “Não quiseram vender, enquanto podiam, a empresa aos alemães, agora já é tarde. Tenho é pena dos jovens que lá trabalham e que têm empréstimos para pagar”.
O relógio marca as 15h32. A chuva cessou. São Pedro quis ajudar. Pelas artérias da cidade já se ouvem gritos: “Queremos os estaleiros, não queremos dinheiro”; “Subconcessão igual a destruição”; “Há dinheiro para fechar, não há dinheiro para trabalhar”; “Viana quer progresso”; “A luta continua na empresa e na rua”.
Se há uma hora, o fracasso da manifestação era o mais falado, as milhares de pessoas que agora ocupavam a principal Praça da cidade eram a prova viva de uma cidade e de um país unido. Activistas, deputados, amigos, várias gerações de famílias, trabalhadores dos estaleiros e até da antiga Lisnave, todos numa só voz: “Estamos juntos, viva a Viana, viva aos Estaleiros”. No palco ali montado, um jovem na casa dos 20 anos a cantar o seu rap, uma música de revolta. As palmas encheram a Praça. Depois, Zeca Afonso e a “Grândola, Vila Morena”. Aqueles rostos com olhos cravados no vazio, na esperança, a gritarem: “O povo é quem mais ordena”. No fim, a promessa de continuarem com a luta.