Assim que se iniciou a escola, o que coincidiu com as primeiras chuvas, começou o martírio do trânsito. Parada na 2ª circular, em Lisboa, o travão de mão accionado por um longo período, foi com grande felicidade que olhei o livro no banco do pendura. Habitualmente ando sempre com um, e foi a minha salvação naquelas 2 horas em que o meu carro poderia ter ganho raízes no alcatrão. Continuei o capítulo que tinha iniciado na véspera, já sonolenta, e deparo-me com um parágrafo sobre uma das personagens, a Escritora:
“Em certo sentido, pessoas como ela, que usam a pena, podem ser perigosas. A primeira coisa que nos ocorre é a suspeita de falsidade – uma pessoa assim não é genuína, mas sim um olho em constante observação, e tudo aquilo que vê transforma em frases e, desta maneira, priva a realidade daquilo que é a sua característica mais importante -o inexprimível” em Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk
Não pude deixar de sorrir, indiferente ao senhor do carro ao lado que me olhava com estranheza, ao ver-me assentar o livro sobre o volante. Escrever é decifrar a realidade, ou inventá-la, compô-la, e é quase como alinhar o incompreensível, é uma tentativa, muitas vezes aquém do objectivo, de criar a ordem e de aniquilar o indefinido. Escrever é submeter os pensamentos a uma matriz.
Há muitas ideias feitas sobre os escritores. A democratização da escrita permitiu que diversas pessoas (e diversas (des)qualidades…) se manifestassem, mas ainda hoje o escritor clássico é visto com algum charme e mistério, um pouco antissocial e reservado. Muitas vezes temperamental, hipersensível, observador e crítico, capaz de alinhar em palavras tudo aquilo que o seu cérebro atento pensa. Perigoso, portanto. A ameaça torna-se mais real quando a apreciação ou julgamento incide sobre questões sociais, gerando controvérsia, ou quando se dedica a questões mais pessoais, em que se teme a revelação de acontecimentos, gerando sensibilidades.
Nesse sentido, há duas frases que tenho visto por aí, cuja autoria desconheço, mas que se resumem a algo como: “se um escritor te amar, você nunca morrerá” , exaltando um sentimento transformado em imortalidade e “não irrite um escritor, ele pode metê-lo num livro e assassiná-lo” esta bem mais corrosiva e simultaneamente cómica.
Mas há muito mais ideias feitas sobre essa gente estranha que escreve.
Uma das ideias é que o escritor escreve sobre a Santíssima Trindade: me myself and i, ou seja, só escreve sobre si próprio. Haverá uns quantos escritores umbilicais, obviamente, mas parece-me que é preciso ser-se muito curto de vistas para reduzir a sua escrita a si mesmo, não só porque não conheço ninguém assim tão interessante e com conteúdo que gerasse tal obra, mas sobretudo porque seria prescindir de toda uma vivência com o mundo. É evidente que há na escrita uma personalidade, que se projecta, pelo estilo ou temas. Mas a fonte de inspiração de um escritor é tudo o que o cerca, as pessoas, as suas observações e comportamentos, o mundo, em resumo, ou a imaginação que transcende a realidade.
Há quem considere que, ainda que se use de muitos malabarismos e camuflagens, o escritor escreve ainda assim sempre sobre si. Que usa esses recursos para não assumir essa experiência, mas ainda assim quer falar dela. E estes são um tipo de leitor detective, que gosta de entender a narrativa não como lhe é apresentada, mas numa segunda camada, contente consigo próprio por ter descoberto o escuso segredo do escritor. E eu acho graça a isto, confesso. É um leitor com quem se pode jogar ao gato e ao rato. E isso diverte-me. Certo dia escrevi um texto sobre 2 meninas que encontrei numa bomba de gasolina, um facto real. Uma vizinha que veio-me perguntar se estava a falar dumas meninas da rua, quando não tinha sequer nada a ver. E às vezes são atribuídos certos entendimentos aos textos que andam muito longe daquilo que o autor escreveu ou sequer pensou. A interpretação que cada um faz do que lê é tão mais reveladora de quem é do que do escritor que produziu o texto.
Outra questão, ainda relacionada, é que o escritor manda mensagens subliminares. E esta também me diverte, porque sempre me acusaram de ser demasiado directa e assertiva. Portanto, imaginem o que me rio quando as pessoas concluem, pelos textos que escrevo, que me casei, separei, enviuvei ou amantizei (como se dizia antes…). Ou que estou depressiva, ou que aquilo que se escreve resulta obviamente da transcrição da sua realidade. De uma forma quase perversa, o escritor pode, sim, brincar com isto. No entanto, habitualmente escreve-se o que vai na alma, sem preocupação com a interpretação de cada um, e esse é o estado adequado. A menos que falemos de conteúdos profissionais, claro.
De qualquer forma, parece-me evidente que alguém que escreve terá que ser muito observador, curioso, e capaz de tirar ilações entre factos nem sempre óbvios.
Longe vai o tempo em que ser-se escritor era sinónimo de extravagância, a quem eram perdoados todos os excessos, como cantava o Rui Veloso acerca do baterista atrevido com as moças do baile. Ou em que eram compreendidos todos os devaneios, personalidades intempestivas, a bem da criação e da excelência.
Hoje em dia os escritores são gente comum.
Perigosos? Sim, quando é preciso.