“Distorce-dores” oficiais do reino

Os dias andam cinzentos. As pessoas circulam rapidamente pela rua,  em busca de um ponto de abrigo. Lá fora, as intempéries fazem-se sentir. Dentro do café, os rostos parecem seguir o determinismo do tempo sobre o humor. Cinzentismo neste longo janeiro, o tal a que atribuem uma duração bem maior do que os 31 dias do calendário. Confesso que também me sinto um pouco aborrecida, esperando algum movimento, algo que me distraia de problemas igualmente cinzentos que teimam em me assistir. Passo os olhos pelo telemóvel, onde leio um artigo. Sou interrompida pelo rebuliço…

Na mesa ao lado, um homem está ao telefone, e de forma exaltada informa o seu interlocutor de que irá accionar o Tribunal do Trabalho, por este se encontrar em falta de pagamento de um subsídio de férias. Tento não ouvir, mas é impossível. Parece-me, pelo tom, ainda assim educado, que a conversa vem na continuidade de outras tentativas cordiais de resolver, sem sucesso, e o senhor estará no limite da sua contenção. Percebo, pelas suas reacções, que a empresa em questão terá reagido de forma visceral à sua referência ao Tribunal, e invertendo completamente os papéis, passa de incumpridor do pagamento do subsídio, a dama ofendida pela reacção última de defesa do colaborador, tomada como agressão. O homem desliga, e comenta com o amigo, que, entretanto, bebia a sua imperial tentando perceber os contornos da conversa, que isto de virgens ofendidas, é uma falta de coerência moral.

O amigo acena com a cabeça em tom de concordância. E conta também ele uma situação que ocorreu no seu local de trabalho. Segundo percebi, ligou para uma empresa a requisitar um pagamento devido, e o patrão da mesma foi protelando o mesmo, isto após várias tentativas de cobrança. Uma das vezes foi a empregada que atendeu a chamada, e ficou a par da dívida. Ora, depois do pagamento efectuado, tirado a ferros, o devedor acusa-o de não ter formação pessoal, dado que revela a terceiros (a empregada) uma situação de dívida. Ou seja, não era grave a dívida em si, o adiar do pagamento, mas antes a sua revelação a terceiros.

Volto a olhar para o telemóvel, agora que ambos parecem ter acalmado, na anuência do descaramento de que algumas pessoas apresentam. Passo os olhos pelo artigo, mas ocorre-me que em ambos os casos, há alguém mal-intencionado, que de alguma forma prejudica activamente o outro, mas assim que este opta por tomar uma posição que o defenda, é visto como agressividade pelo primeiro, que obviamente não praticou nenhuma agressão. Na sequência dos actos, alguém continuamente discriminado, após alguns intentos de resolver a situação, tem que apelar a uma resolução mais incisiva e vigorosa. E aí, qual Frei Genebro do Eça de Queirós, são esquecidas todas as delicadezas, e é-se punido por um acto pontiagudo, ainda que em legítima defesa. Isto, obviamente, na visão do prevaricador inicial, umbilical.

Há pessoas que se andam a perder na vida, um verdadeiro desperdiçar de talentos. Em vez de se dedicarem às artes, dando largas a uma criatividade e a uma elevada capacidade de transformar a realidade em obras-primas, são praticantes do onanismo, desperdiçando o pungente fluido em novelas sul-americanas. Contentam-se em usar os seus engenhosos recursos para distorcer realidades, sempre numa perspectiva narcisista e favorecedora. Não têm qualquer capacidade de isenção ou empatia para com o outro. Estas pessoas nunca erram e conseguem, mediante o malabarismo das palavras, ou apelando à emoção, convencer os mais desprevenidos de uma versão da história aprimorada em versão quase religiosa. Pela manipulação, convencem o outro que estão ilibados de todo o mal, e são sempre vítimas inocentes de abusos e ultrajes jamais esperados e duramente sentidos. Reviram a história de dentro para fora, moldam-na a seu belo prazer, sendo que a agressão do outro é sempre superior aquela de que são acusados mas se recusam, jamais,  a reconhecer. Existe sempre uma vitimização, e se não conseguem persuadir o interlocutor de tal versão, atentam em terceiros, pondo em causa o seu valor como pessoa.

Busco informação sobre o tema e surge-me o conceito de Gaslighting, definido como abuso psicológico em que existe distorção e omissão de informações por forma a favorecer o abusador, com a intenção de fazer o outro duvidar da sua memória, percepção da realidade ou mesmo sanidade mental. Todos temos um pouco de abusadores e abusados, mas talvez importe olhar para os nossos actos e vermos que não somos sempre donos da razão, nem podemos obtê-la pela força do transformismo. Poderíamos suavizar a questão, dizendo que os abusadores são pessoas desequilibradas, doentes ou feridas, mas isso seria dar ao determinismo uma força totalitária. A capacidade humana de se analisar ou questionar, deverá sobrepor-se a cada momento, ainda que à posteriori, se bem que normalmente quem mais precisa fazê-lo, é quem menos o faz. Um pouco como aqueles que se propõem a formação, porque reconhecem dela necessitar, contra os que vêm esse pedido como uma confissão de incapacidade, que desta forma permanecerá para a eternidade.

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