A mulher escondia, no quarto do filho universitário, por entre os livros deste, revistas várias de índole feminina. O marido, que ganhava muito bem como controlador aéreo, sustentava esta e dois filhos. Ele que não sonhasse que ela surripiava, do dinheiro para as despesas domésticas, o equivalente a uma revista mensal ou um batôn, ou um par de brincos que lhe aprouvesse, justificou-me o rapaz. Isto aconteceu há cerca de 20 anos. Foi nesse dia que percebi que o meu namoro universitário não chegaria ao fim do curso. A continuar, talvez eu hoje tivesse também que surripiar qualquer coisa, enquanto me entretivesse a ir às compras, rezando para que sobrasse algo da despesa do supermercado e ele não somasse os talões. Nos dias em que o trabalho me esgota, ou em que as coisas não correm de feição, eu penso que poderia ter casado com ele, ou com qualquer outro devidamente instruído para ser o garante da família. Contudo, preciso estar muito desesperada para isso. Rapidamente incorporo novamente em mim e sacudo esse espírito maligno, que por muitos anos sujeitou a maioria das mulheres aos desígnios financeiros (e outros) do marido.
Uma vez, o meu filho, aí pelos 6 anos, perguntou-me como é que a mãe dum coleguinha conseguia levar-lhe o lanche a meio da tarde, levá-lo e busca-lo a qualquer hora, e estar sempre presente nas reuniões todas e mais alguma. Expliquei-lhe que ela não trabalhava, portanto, podia acompanha-lo mais. E o que faz ela durante o resto do dia, perguntou ele. Disse-lhe que tratava da casa, ia às compras. Na sabedoria infantil que muito aprecio, comprovou-me na sua clarividência aquilo que eu também pensava: tu também fazes isso tudo e ainda trabalhas. Confesso que me pareceu sentir a capa de super -mulher a sacudir ao vento. Afinal, acumulo, como tantas outras mulheres, funções várias. Se isso é sinal de inteligência, já é outra questão. Ou assim penso em dias negros, que seria tão mais simples esperar que o meu sustento caísse do céu, como refere a Bíblia sobre o sustento dos animais bravios.
De facto, em 20 anos, passámos deste facto, digno dum bolorento Estado Novo, em alguns casos, ao extremo oposto. Não é que os homens fiquem habitualmente em casa, numa completa inversão de papéis, mas hoje em dia é muito frequente as mulheres ganharem mais. Seja porque as mulheres estudaram mais (é um facto comprovado, não necessariamente melhor remuneradas), ou arriscaram mais, ou se dedicaram mais ou foram adjuvadas pela sorte, que também explica muito, o facto dá-se. Os homens têm um ego complicado, é um facto. Como diz um amigo, foram todos educados no pressuposto, muitas vezes vivenciado na própria família berço, de que o homem é o sustento da casa. Algumas vezes, as mulheres até trabalhavam apenas para “comprar uns botões”, que até não tinham “necessidade”. Quantas vezes ouvimos isto? Porém, na maioria dos casos a receita feminina era um complemento, não uma contribuição de igual para igual na finança matrimonial. E o que fazem os homens de hoje, quando as suas parceiras ganham mais do que eles? Meus amigos, os homens sofrem. A mim, que não sou homem, parece-me que os homens passaram de um ponto em que sofriam, porque não tinham dinheiro, para um ponto em que sofrem, porque não são o principal fornecedor do banco familiar.
Os homens sentem-se assim minimizados na sua posição hierárquica, como se tivessem perdido lugar na assembleia familiar e consequente capacidade decisória. Pior, sentem que pesam no esforço da parceira, que não conseguem acompanhar, cabendo-lhe a elas o pagamento unilateral de certas despesas, porque eles não chegam lá. Muitas vezes são os próprios a parafrasear um envergonhado “decide tu”, onde se subentende um “já que és tu que podes pagar”. Sentem que muitas vezes bloqueiam idas aqui ou ali, para não se exporem a essa incapacidade financeira. Adicionalmente, gostariam de poder libertar a parceira de um trabalho que por vezes as sobrecarrega, e onde se esfalfam, mas não o podem fazer. Nos dias em que as mulheres chegam cansadas e saturadas de certas atitudes, gostariam de lhes dizer: “Vem-te embora, não te sujeites a isso.” No entanto, sabem que não o podem fazer, até porque elas, conscientes da dependência familiar, não o poderão fazer facilmente. Sem alternativa ao mesmo nível, pelo menos. E sentem-se culpados.
E o que sentem as mulheres? Desejam que o orgulho não deve sobrepor-se ao nível de vida familiar. Sentem que é indiferente quem ganha mais, sendo que o rendimento da família é desta, e para esta, indiferentemente. Afirmam que se fosse ao contrário, gostariam que o parceiro não lhes atirasse em cara que elas ganham menos, como elas não o fazem a eles, afinal. Durante anos, foram as mulheres que estiveram nessa posição, pelo que sabem do que falam, pela vivência dos ascendentes. Sentem que não devem privar-se dum conforto material, que se estende aos demais membros, com medo da dor masculina. Que deverão poder usufruir sem culpas dum nível de vida que o seu trabalho lhes permite, sem melindres. Que se quisessem um homem rico, tê-lo-iam conseguido, mas não é o que pretendem. Que um homem ganhar menos não é vergonha, é apenas um facto. E sentem que é ridículo que, duas pessoas que se amam, discutam por questões financeiras, longe do nível de sobrevivência.
Enfim, histórias reais com que nos cruzamos, mais frequentes do que possamos pensar.
Quanto a mim, a solução para o facto seria o casamento entre pares com o mesmo nível de rendimento, heranças e afins, para além da mesma idade, região, religião, ideias e objectivos, desconsiderando empatias e paixões. Um completo enfado, portanto. Desconheço como seria isso possível, e arrisco prever que a vida marital acabaria, eventualmente os nascimentos, enquanto homens e mulheres focam a sua vida na discussão do apercebido poder financeiro. Porém, se alguém me souber elucidar sobre como não discutir estas questões, ficarei eternamente agradecida.