Eu, uma confessa e despudorada maluquinha dos animais, venho exercer o meu direito de resposta a preconceitos e estigmas a que habitualmente são sujeitos os maluquinhos. É com orgulho que me insiro neste grupo, é um facto que a maioria de nós aceita como elogio, e inclusivamente, numa associação onde exerci voluntariado, havia 2 grupos de chat: os maluquinhos dos cães e os maluquinhos dos gatos, consoante se dedicavam ao canil ou ao gatil. É uma honra, portanto.
No entanto, sei que essa classificação é muitas vezes interpretada de forma doentia, e por isso venho aqui desmistificar esta questão. Ora então vamos lá analisar as acusações expressas ou veladas a estes maluquinhos:
1. São solitários
Este é o mais comum. Estas pessoas aparentemente não têm família, nem amigos, nem interesses. Vivem num isolamento extremo e não têm vida própria. Presumo, sendo muito crente na boa humanidade, que é uma forma de entender a disponibilidade que os maluquinhos têm para a causa, porque só não tendo nada nem ninguém é compreensível tal extensa dedicação. Indo mais longe, na perversão do tema, são pessoas cujo voluntariado surge como forma de preencher os dias da completa solidão, porque afinal, nada têm senão a sua própria companhia. Indo ainda mais longe, no horror da solidão, frequentam as associações em busca de amigos ou até mesmo par romântico.
Pois então é assim: conheço solteiros inveterados, casados de longa duração, com filhos, sem filhos, empregados, desempregados, tímidos ou expansivos. Uns mais solitários, outros menos. Uns que vão individualmente às acções, outros que vão em família nuclear. Amigos surgem, sim, naturalmente. Namoros também. Mas surgem como em qualquer outro lugar, não é uma ida ad hoc.
(e aqui abro um parêntesis para vos contar, que eu, como voluntária, fui abordada por um desconhecido que, dizia ele, queria apadrinhar um cão do abrigo, quando vim a descobrir que afinal pretendia era apadrinhar-me a mim, se é que me entendem… Nem todos os (verdadeiros) malucos estão dentro das associações. Talvez ele próprio achasse que eu seria uma dessas solitárias carentes e, portanto, presa fácil. Quem lhe mostrou as presas fui eu, e acreditem que não mais voltou ao abrigo.)
2.Têm problemas psiquiátricos
Este vem muitas vezes relacionado com o anterior. São estigmas como os da cat lady (a senhora dos gatos), acumuladora de vários animais, sem vida social, mas que, ao contrário do solitário que procura desesperadamente a integração na sociedade, é averso a pessoas e promove o próprio afastamento. São, segundo algumas visões distorcidas, pessoas que evitam ao máximo o contacto com outros humanos, com quem não sabem lidar, e escudam-se na sua vida devotada aos animais. E o refúgio baseia-se na incapacidade de relacionamento com os humanos que saudavelmente têm opiniões, hábitos e personalidade, pelo que os animais, não questionando ou não pondo em risco o seu modo de vida, são uma plateia mais simpática e mais concordante.
Ora bem, o gosto pela solitude não me parece patológico dentro de certa medida. Mas acho inverosímil que alguém que seja capaz de trabalhar internamente a dor que o sofrimento animal lhe causa, não se deixando travar por ela, mas antes usando-a como balanço para efectuar algum tipo de mudança ou melhoria, possa ser catalogada como doente mental por esse facto. A contrário, revela uma capacidade de resiliência, constituindo útil o padecimento, que quebra a inação e age sobre o assunto. Mas obviamente que haverá doentes mentais que gostam de animais. Como haverá os que gostam de plantas ou de nadar.
3. São desinteressados pelas causas humanas
Esta enerva-me particularmente e é nas campanhas de angariação de ração nos supermercados que é mais visível. Por entre as pessoas, as que aderem, as que não aderem, as correctas e as deficitárias de boa educação, há sempre um espécimen que se sai com uma acusação expressa: os velhinhos e as crianças não ajudam vocês. Sim, assim do nada, aquele transeunte deve ter uma capacidade imensa de avaliar as pessoas e cataloga de imediato que se te preocupas com os animais é porque não gostas de pessoas e nada fazes para as ajudar. Não te conhece de lado algum, mas sabe o que fizeste no verão, outono, inverno e primavera passados.
Habitualmente não reajo, já dei para esse peditório, mas quando ainda era uma jovem mais arisca, arrisquei perguntar a um desses o que fazia ele pelas causas humanas, tendo-me respondido que “intervêm”. Uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma, já dizia a Irene Lisboa.
O karma agiu de imediato, que é coisa rara, e o senhor teve que ir trocar de carrinho de supermercado umas 3 vezes porque todos os que tirava tinham a direcção desviada. O que me ri com o segurança do supermercado…
Já nem vou pelo pensamento costumeiro que é o de que os que dizem nada fazem, pelas causas humanas ou outras. O que me tira do sério é reduzir os outros à sua própria incapacidade de se dedicar a causas várias, habitualmente a nenhuma. Pode-se ajudar um canil e a luta contra o cancro, ou uma associação autista e os invisuais, ou tantas outras combinações. Porque gente que se interessa têm, felizmente, várias frentes de acção. É o que tenho visto.
4. Dizem-se amigos dos animais mas comem carne
Nesta questão só me lembro daquele conto do Frei Genaro do Eça de Queiroz. O santo homem viu, à sua morte, pesadas as suas boas práticas em vida comparativamente ao erro de ter cortado uma perna a um animal em vida, o que resultou na sua condenação.
Isto é, o simples facto de não ser vegetariano ou vegan é para algumas pessoas uma contradição, uma incoerência. Há entre os maluquinhos quem o seja, há quem tenha a preocupação de reduzir o consumo animal, como há quem distinga níveis de animais sencientes, ordenados pelo seu entendimento, mas também pela necessidade geradas pela cadeia alimentar. Não há uma hegemonia de práticas alimentares, como não haverá em qualquer outro grupo de pessoas com interesses alternativos. Discutível, admito, embora a não pratica completa não invalide os feitos válidos. E normalmente o acusador é aquele que nunca sequer questionou a própria alimentação….
5. Têm excesso de sensibilidade
Esta é mesquinha. É como se os maluquinhos segregassem uma hormona em excesso, como se a sensibilidade fosse em demasia. Ai que és tão sensível é uma forma um pouco mais adulta do que o olha os namorados, primos e casados. É uma depreciação por excesso de sentimento e emotividade. Cada um com a sua, e se há alguns de nós que choram a ver determinado tipo de filme, há outros impregnados de secura. No fundo é criticar o que não se percebe, exaltando a fragilidade além da medida como indubitável ponto fraco.
A generalização ou a catalogação são sempre injustas e perigosas. Os maluquinhos dos animais não nascem numa linha de montagem onde se produzem seres com características standard, como não são iguais aqueles que jogam ténis ou os que gostam duma mesma série. São pessoas como as outras, com defeitos e qualidades, gostos e manias, sendo que a única coisa que as une é o interesse pelos animais.
Por isso, por favor, não assumam o todo pelas partes.