Anjos na Terra e no Céu

Todas as tardes ela estava sentada naquele banco de jardim. Ela e as outras mães que se juntavam e partilhavam histórias. Cada filho é único e os seus eram sempre diferentes e com particularidades que mais nenhum possuía. Como era agradável verificar o renovar da vida, a alegria que se sentia e a esperança que se adivinhava.

As conversas subiam de tom e num instante já não se percebia se eram as crianças ou as mães que soltavam tantos sons e tão altos que se confundiam com aqueles que os pássaros faziam. Havia crianças de todas as idades. Umas já brincavam sozinhas, outras faziam grupos e outras eram tão pequenas que ainda estavam ao colo.

Duas mães discordavam do modo como se devia proceder com o adormecer, outras trocavam receitas e ainda mais outras comentavam as proezas dos seus petizes. Ela escutava, com ouvidos quase surdos e olhos de grande tristeza. Estava ali, mas longe.

No seu colo estava a Leonor, uma bebé tão bonita quanto se pode imaginar. Gordinha e bem cuidada, dormia a sono solto num corpo que a amparava, mas só fisicamente. O resto, a alma estava num outro local, parada no tempo, esperançosa que houvesse retrocesso.

Hora do lanche e os mais crescidos pareciam gatos na hora do recolher: vinham de todos os lados, aos magotes, sujos, mas com ar feliz. Os mais novos, aqueles que ainda tinham horas no choro, já dormiam tranquilos. Ela olhava para a filha que irradiava paz e calma.

As outras mães nunca iriam perceber, não saberiam entender como ela se sentia. A Leonor estava ali, ao seu colo, mas o Vicente tinha partido. Só tinha vivido uns meses, se assim se poderia dizer. Ela, no fundo, sabia bem o que se estava a passar. Tantas coisas a serem acertadas não podia ser bom.

Quando soube que estava grávida, sentiu-se a mulher mais feliz do mundo! Depois de tantas tentativas, de tantos desgostos, a realidade aparecia-lhe sorridente e a duplicar. Gémeos. Não que o tivesse desejado, mas era uma surpresa que compensava todos os percalços anteriores.

Fez tudo certinho, as refeições, as consultas, as dietas, tudo o que lhe diziam e quando descobriu que eram um menino e uma menina, a vida surgiu-lhe perfeita e ajustada. Há um tempo para tudo e aquele era o seu.

Tantos planos e expectativas que se criaram, tantas ideias feitas e tantas formas de futuro se aplicaram que o tempo passou sem que desse conta. Nada de cores diferentes, nada de clássico, nada de coisa nenhuma. Hormonas, era o que estava a acontecer.

O grande dia chegou mais cedo do que o previsto e as dores eram de menor importância. Queria um parto normal, sentir tudo, ouvir os seus meninos, sentir as suas vidas a aproximarem-se de si. Mas não foi assim que aconteceu. Foi tudo muito rápido porque eles tinham pressa.

Primeiro o Vicente, que encheu a sala com o que tinha acumulado nos pulmões e depois a Leonor, mais tímida, mas também contestatária. A mãe semi-consciente, rejubilava com o momento. O toque, as suas peles, os seus corações, as suas respirações ainda eram melhores do que tinha imaginado.

O momento ficou registado, como manda a tradição e a vida agora era mais preenchida e sonora. Duas bocas que reclamavam alimento, dois corpos que pediam atenção, duas vidas que se iniciavam com vigor.

Vicente gostava mais de dormir e Leonor de comer. Duas entidades tão diferentes a crescerem. Leonor sorria, Vicente fechava os olhos. Eram relógios que funcionavam na perfeição. Se se afastavam um do outro havia choro na certa.

O pai tinha, finalmente, convencido a mãe a descansar porque estava exausta. Colocou os bebés nos berços e deitou a mãe. Deu-lhe um beijo de carinho e de sossego. Dormiam naquela casa, tranquilamente, a sono solto.

Os pais acordaram e a Leonor também. Vicente ficou a dormir para sempre. Morte súbita. Não foi culpa de ninguém. Uns míseros dias de vida fora do útero e partiu para um destino final. Leonor sentiu e chorou durante dias. O pai culpabilizou-se e a mãe queria morrer.

Leonor chorou, suavemente, despertando a mãe dos seus pensamentos. Sorriu. “Muito sorridente a sua menina. E que linda! É uma felizarda.” “Pois sou, tem toda a razão.” “Quantos meses tem?” “Só tem 5, mas parece mais velha, eu sei. E nasceu com pouco mais de 2 quilos.” “Não me diga! Muitas felicidades!

Não sabem nem precisam de saber. Ela já é outra, pode dedicar-se à sua Leonor, a menina que teve força para ficar e que a puxou para a vida. “Só lhe dá mama? Onde irá parar essa rapariga? Posso pegar nela?” “Claro que sim.” Leonor, talvez consciente do seu papel, voltou a sorrir.

Vicente tinha ido, com o vento e com os sonhos que se desfizeram. Não tinha de ser. Estava numa outra dimensão onde a mãe ainda sabia comunicar com ele. O seu nome era mencionado com naturalidade. Um dia mais tarde quando Leonor tiver entendimento, irão falar do seu irmão, daquele ser que, sem o saber, acabou por unir ainda mais a família.

Volta amanhã? Gostava de fotografar a sua menina. Não se importa? É lindíssima.” “Com todo o gosto.” “Venham cá ver que delícia! Que boneca! E simpática. Venha sempre que gostamos de a ter por cá.” A mãe já sorri, meio envergonhada de tanta atenção. “Sim volto, com toda a certeza.

E a Leonor, perfeitinha, continuava a cumprir a sua missão.

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