Necessidades educativas pouco especiais

Setembro é o mês de começo do ano lectivo. As famílias estão felizes com a organização do regresso ou do ingresso das suas crianças na escola. Serão todas? Não. Uma parte não assim tão pequena de famílias vive este período angustiada sem saber o futuro dos seus educandos. São as famílias de crianças com necessidades educativas especiais. Nestas, incluem-se todas as alterações ao regular padrão de desenvolvimento físico, psíquico ou neurológico e que levam à necessidade de adaptações e ajustes ao programa curricular para que todas, sem excepção, tenham acesso ao conteúdo programático definido para a respectiva idade e nível de escolaridade.

Segundo a lei vigente no nosso país, o decreto-lei n.° 3/2008, ponto 2 do artigo 1.°, «a educação especial tem por objectivos a inclusão educativa e social, o acesso e o sucesso educativo, a autonomia, a estabilidade emocional, bem como a promoção da igualdade de oportunidades, a preparação para o prosseguimento de estudos ou para uma adequada preparação para a vida profissional e para uma transição da escola para o emprego das crianças e dos jovens com necessidades educativas especiais.» Além disso e conforme os pontos 2 e 3 do artigo 2.°, «as escolas (…) não podem rejeitar a matrícula ou a inscrição de qualquer criança ou jovem com base na incapacidade ou nas necessidades educativas especiais que manifestem» e «as crianças e jovens com necessidades educativas especiais de carácter permanente gozam de prioridade na matrícula, tendo o direito, nos termos do presente decreto-lei, a frequentar o jardim-de-infância ou a escola nos mesmos termos das restantes crianças».

Ora, acontece que, malogradamente, a lei não é aplicada. E vários são os motivos para tal. A maioria das escolas não está apetrechada com os recursos humanos necessários para fazer face às necessidades destes alunos. Muitos terão a sua autonomia condicionada e precisarão de apoio do professor ou do auxiliar de acção educativa para a realização das tarefas básicas do dia-a-dia, como alimentação ou idas à casa de banho. Em escolas em que escasseiam os profissionais de educação para os alunos de ensino regular, o que dizer dos profissionais que deveriam ser alocados para o apoio aos alunos com necessidades educativas especiais?

Lidar com o problema de perto

Vou falar do meu caso enquanto mãe de uma criança com necessidades educativas especiais, não para instrumentalizar, mas para dar um exemplo concreto da realidade e para ser mais fácil a compreensão da problemática por quem não a vive no quotidiano.

O meu filho tem seis anos e é autista. Este ano lectivo entrou no primeiro ano do primeiro ciclo. Esperava eu na escola pública. A escola pública é uma conquista de Abril e deverá estar à disposição de todos os cidadãos, independentemente da sua proveniência social e da sua capacidade de adequação à norma vigente. É na escola que formamos os cidadãos do futuro, que ensinamos às nossas crianças as competências de que precisam para exercer uma profissão. É também na escola, paralelamente à família, que lhes damos ferramentas para serem pessoas responsáveis e respeitadoras, capazes de acolher e incluir na diferença e na adversidade, tornando a diversidade e a pluralidade cultural e social numa mais-valia para um crescimento sadio. No entanto, não foi isso que testemunhámos.

Na escola onde fez o pré-escolar, disseram-me que não podia ficar para o ensino básico, apesar de ser a escola da área de residência, pois esta não tinha unidade estruturada, ou seja, uma unidade de apoio especializado para crianças no espectro do autismo. Além disso, para toda a escola (primeiro ciclo do ensino básico e pré-escolar), havia apenas um professor de educação especial, não havendo, portanto, recursos humanos disponíveis para suprir as necessidades encontradas. Note-se que, na sala de pré-escolar do meu filho, com ele, eram três as crianças no espectro. A lei diz que a escola é obrigada a acolhê-lo independentemente de ter ou não unidade estruturada, pois os docentes e auxiliares terão de criar as condições adequadas para a sua integração. No entanto, a resposta foi um veemente não.

Tínhamos, pois, um problema: a busca de uma escola. O que seria de fácil resolução, pois bastaria o cumprimento da lei e qualquer escola, com unidade estruturada ou não, estaria disponível para o acolher e providenciar todas as valências adequadas à sua correcta progressão académica. Existiam, contudo, aqui dois problemas. Por um lado, a efectiva falta de recursos humanos, sobretudo de professores de educação especial, que condicionam a adequada resposta a estes alunos — há escolas que têm unidades estruturadas para determinadas condições específicas, como autismo, surdez-cegueira, ou generalizadas, como as unidades multideficiência, que acolhem sobretudo crianças com paralisia cerebral, em que se preconiza que o aluno esteja integrado na turma e vá à unidade durante alguns períodos para actividades específicas adequadas às suas necessidades e passíveis de desenvolver as suas competências. Por outro lado, temos a enorme falta de preparação dos docentes e auxiliares de acção educativa, tão ao nível de formação específica como de conduta. Isto torna a relação com estas crianças em algo desajustado e contrário ao que se pretende, pois a inclusão não é garantida e a aceitação depende da boa-vontade de cada um e dos dos valores intrínsecos do profissional em causa — mesmo em escolas com infraestruturas e profissionais capacitados, os relatos das famílias são contrários ao previsto na lei, ou seja, as crianças acabam por passar o dia na unidade ou com o professor de educação especial, indo esporadicamente à turma de ensino regular, o que não promove nem a inclusão no grupo, nem a aceitação da diferença por parte daqueles que a não têm. 

Afinal, qual a solução?

Voltando ao problema original: a colocação efectiva de alunos com necessidades educativas especiais na rede nacional de escolas públicas. Os familiares destas crianças deparam-se com a inexistência de vagas e sem alternativas que possam suprir esta falha.

Dizem-me alguns conhecidos que a solução reside num colégio. Esta é a solução demagógica e enviesada que o governo e os partidos que o sustentam desejam. Uma passagem crescente dos alunos para os estabelecimentos de ensino detidos por grupos económicos privados em detrimento de um real e consequente desinvestimento na escola pública, tanto em infraestruturas como em recursos humanos. Além disso, os colégios que recebem alunos com necessidades educativas especiais ou têm instalações próprias e um ensino especial apropriado ou simplesmente recusam a admissão destas crianças, uma vez que não é vantajoso para a escola ter alunos que baixem o ranking de sucesso escolar do dito colégio. E há outro factor importantíssimo, que é o custo que um colégio acarreta. Os impostos pagos pela família da criança são o bastante para custear o acesso desta à escolaridade obrigatória sem que esta tenha de — a menos que haja vontade expressa de o fazer — suportar o custo da educação da sua criança no privado. A comparticipação da Segurança Social é escassa ou praticamente inexistente, em muitos casos, pois nem sequer cobre as terapias de que a criança necessita, quanto mais para uma escola privada. Resta a escola pública, que, pelos motivos acima expostos, não dá a resposta devida. 

As eleições autárquicas foram este fim-de-semana. O povo decidiu nas urnas quem governará os seus municípios nos próximos quatro anos. A escola é, também, ou deveria ser, uma preocupação de cariz autárquico, já que os alunos são colocados nas escolas da área de residência. É preciso, pois, decidir em consciência e com a noção da destruição que as políticas neoliberais têm perpetrado nos pilares básicos de uma sociedade moderna e civilizada, que quer evoluir e desenvolver-se — saúde, educação, habitação e cultura para todos — e não sucumba, uma vez mais, aos interesses do grande capital privado.

Nota: Este texto segue as regras do antigo acordo ortográfico.

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