Encontrei a Maria um destes dias, por casualidade. Perguntei pela mãe, que eu conhecera num outro contexto, e diz-me ela:
– Lá anda, sabes como ela é….
Encolhi os ombros, a tentar imaginar a prostração em que vive, disfarçando a opinião pouco favorável que tenho da mesma. Felizmente ela evitou o desastre, terminando a frase:
– …. sempre enérgica, sempre cheia de iniciativas.
O meu espanto foi tanto que me calei, sem saber o que dizer….
Fiquei, contudo, a matutar no assunto.
Como é possível que eu e a filha tenhamos ideias tão opostas sobre uma mesma pessoa? Podia ser uma ideia ligeiramente diferente, mas era totalmente simétrica, ao ponto de me questionar se estaríamos a falar da mesma pessoa. Para mim, a pessoa em questão, perdoem-me o abuso opinativo, é a personificação da moleza, da fraca iniciativa, do pesar sobre terceiros, do marasmo mental. Pensando no assunto, não era a primeira vez que eu e outra pessoa tínhamos opiniões divergentes, mas nunca a este nível de distanciamento.
Comecei por pensar que ela, sendo filha, teria naturalmente acesso a muito mais informação do que eu, pelo que, à partida, teria obviamente um parecer mais fidedigno. Mas não me convenceu. Revi as impressões que tivera e me fizeram cimentar esta ideia, e cheguei à mesma conclusão. Teimosa, tendenciosa, eu? Talvez, mas continuava a pensar de igual forma. Poderia estar relacionado com as perspectivas de cada um, que gerariam avaliações diferenciadas? Dependendo do que eu possa considerar o que é uma pessoa activa, e do que a filha possa considerar, as conclusões poderão ser diferentes, mas …a este nível gigantesco?
Ocorreu-me posteriormente, que o que é dado a ver à filha é consideravelmente diferente do que me é dado a ver, não só em termos de exposição ou duração da mesma, mas sobretudo em contextos completamente díspares. As situações em que ambas convivem ou vivem conjuntamente são contextos diametralmente opostos às minhas experiências. E acredito que a isso seja devido: não somos iguais, não nos comportamos de igual forma em diferentes contextos, ou com pessoas diversas. Talvez a filha a veja em situações que lhe dão alento, e eu a tenha observado em situações que lhe sejam desinteressantes ou penosas. Relembro agora, que alguém comentou sobre um antigo colega de trabalho, que ele era execrável em funções, mas um tipo porreiro para beber uns copos na esplanada. Ora, se eu trabalhar com ele, terei consequentemente uma opinião diferente da de alguém que apenas o vê nos corredores, mas com quem se encontra no Happy Hour. Mesmo em idênticas situações, a personalidade das pessoas envolvidas influi reciprocamente no ambiente de trabalho. Considerando os diversos colegas com quem já nos cruzámos, por exemplo, poderemos considerar um espectro alargado: desde aqueles com quem desenvolvemos ligações pessoais, até aqueles de quem já mal nos lembramos. Se alguém me achar espectacular, e outro me achar uma idiota completa, se calhar têm ambos razão. Provavelmente sê-lo-ei distintamente, conforme o apreço que tenha por cada um, ou a forma como eles próprios me tratarão reciprocamente. Não se ser uniforme, acaba por ser um certificado de autenticidade. Como dizia a minha avó: nem Cristo, que foi Cristo, agradou a todos.
Recentemente li um livro sobre Gestão da Mudança.
Numa parábola, que tem muito mais do que se lhe diga do que uma história aparentemente simplista, foram identificados numerosos perfis de reacção à mudança: desde os activistas aos reactivos, dos aderentes aos resistentes, era inevitável a identificação com pelo menos um.
Para mim, a definição única de um perfil foi muito redutora, tendo dado por mim a personificar o pinguim activo em alguns sectores da minha vida, mas resistente noutros. Freud explicará, mas parece-me claro que essa situação é decorrente não só da nossa personalidade, mas das experiências passadas, do grau de envolvimento, da vontade, do prazer ou medo do risco. Nessa visão em postas, cortes longitudinais humanos, cada um de nós parece ser um complexo sistema cheio de imprevisibilidades a quem nos conheça parcialmente.
Recordo uma professora de Sociologia que repetiu até à exaustão que, em quase todos os contextos, o total é mais do que a soma das partes.
Acredito que ninguém possa ter uma visão abrangente sobre alguém, por muito íntimo que seja da mesma, falta sempre uma qualquer perspectiva. A previsibilidade é castradora, pelo que a capacidade de surpreender é uma riqueza. Somos todos compostos de facetas policromáticas múltiplas, sobre as quais incidem sol e sombra, projectando imagens caleidoscópicas que nem todos conseguem ver. Graças a isso, poderemos continuamente surpreender aqueles que connosco vivem, para o bem e para o mal.
Talvez seja isso que nos distinga dos autómatos, afinal.
Toda a sorte de contradições se podem encontrar em mim sob algum ponto de vista e sob alguma forma. Envergonhado, insolente; casto, luxurioso; tagarela, taciturno; duro, delicado; inteligente, estúpido; irascível, bonacheirão; mentiroso, veraz; douto, ignorante; generoso, avaro e pródigo: tudo isto vejo em mim de algum modo, conforme para onde me viro. Quem quer que se estude a si próprio muito atentamente, encontra em si, e até no seu mesmo juízo, igual volubilidade, igual discordância. Não há nada que eu possa dizer de mim numa só palavra de modo absoluto, único ou inabalável, sem incluir mesclas ou misturas.
Michel de Montaigne, in ‘Ensaios – Da Inconstância das Nossas Acções’