– Pobres presépios de pastores despidos de gado. É que não deixaram nem uma ovelha, levaram-nas a todas.
– Há ladrão entre nós! Que se acuse para que se faça o Natal!
– Vê lá, não tenhas tu as ovelhas em tua algibeira!
Há aqui roubo, daqueles que levam mais do que pertences. Roubo de ofensa, de quem carrega o profano no peito. Escandalosa forma de estar ao roubar-se disto.
Os maldizentes não mais fazem que discutir o absurdo da circunstância. E hoje que é dezembro, vinte e quatro em calendário, está uma aldeia despida de lã figurada.
Entrou o ancião no casebre de aldeões em alvoroço. Calaram-se num sopro pelo peso das barbas sábias:
– Não haverá Natal e hoje não se jantará. Aqui ficaremos em silêncio.
Olharam-se desnorteados. Que se entenda que há ladrão foragido de ovelhas em punho, e tantas que as roubou!
Disse Telo:
– Baldiro, nobre ancião, não deveríamos estar investigando? Punindo quem ousou ofender-nos de modos destes, pela ladroagem?
– É minha ordem que aqui se fique em silêncio.
Nunca antes se alvoraçaram com ordens de Baldiro. Hoje não se contiveram. Coisas que à fé respeitam enraivecem os Homens, vá se lá entender.
– Calemo-nos! Aqui estão, fustigando-se em palavras, espingardeando descrédito para ter culpado à força na noite Santa. Que o silêncio vos traga pensamentos nobres e que a fome ronque em vosso estômago como vós haveis aqui roncando.
Ouviu-se um baixinho choro.
– Que te aflige, Seliana? – quis saber Baldiro.
– É por conta de Belo, meu filho. Não sei que paradeiro leva.
– Baldiro – interrompeu Telo-, também não se sabe do pastor. Não terá ele as outras ovelhas também?
– Para que as quereria em barro se as tem de carne, Telo? Acautela-te! Seliana, Belo tem o Natal no coração, não chores. Encontrá-lo-emos.
Longe das luzes, sentado no escuro da terra fria, estava Belo, esperando do Natal o milagre. Trazia o sonho figurado em barro numa saca de serapilheira. Não foi pelo barro, foi pelo sonho. Rezou para que o visse o menino, nesta noite parido, e tocasse as ovelhas com o milagre da vida. Belo sonhava ser pastor e nem uma ovelha tinha. Estas que tirou, de todos os presépios da aldeia, pequenas e barrentas, não o tornavam pastor, só ladrão.
Esperou.
Horas passadas, embaciaram-lhe os olhos pelas lágrimas da esperança acabada. Observava-o de longe o pastor, o verdadeiro, que o seguiu por todos estes dias. Viu o sonho no saco e a esperança sentada na terra escura pela noite. Doeu-lhe nunca ter notado que cuidava de mais do que gado, era também o sonho de outros. A quatro ovelhas do rebanho seu, ordenou que fossem ter com Belo.
De longe, espreitavam os aldeões trazidos pelo ancião para isto ver, que lhes disse:
– Que o escuro da noite vos mostre a luz dos sonhos, a ternura da bondade e a magia de sermos mais do que barro.
Aproximaram-se, as ovelhas de carne, de Belo. Todo ele em felicidade descontrolada, abraçando a lã quente pelo sangue da vida, ajoelhou-se em preces:
– Estas ovelhas, Senhor, delas cuidarei. Eu, Belo, sou agora pastor.
O dono da oferenda, que em magia deixou ficar Belo, afastou-se. Não seria por ele que se estragaria o sabor do milagre.
Aos aldeões, tomados pela vergonha das acusações, disse-lhes Baldiro:
– Hoje conheceram o Natal. Os Homens devem saber salvar-se uns aos outros.