Calblanque

Até Calblanque

Quando não se escolhe o caminho mais fácil.

Admiro isto. É inspirador. Pode pôr as coisas em perspectiva; as coisas estão sempre em perspectiva – na nossa – mas parece que traz à evidência  (de quem queira ver) aquilo que é realmente importante. Ilustra a tão batida “tudo vale a pena…”

Tenho a memória contada de alguém chegar a casa na madrugada que põe término(s) às noites de copos e vadiagem e fazer uns ovos porque a fome aperta e não há lugar à rendição de abrir um armário e sacar um pacote de bolachas fácil, imediato. Ou uns amigos capazes (abençoados) de fazer uma mousse de chocolate (abençoada) às três ou mais da manhã, porque era mesmo um doce que apetecia. Conhecemos essa urgência… Mas àquela hora não se liga uma batedeira para montar claras em castelo. Há vizinhos. Um espírito comedido mandaria abandonar o plano e encontrar alternativas, mas não é o caso deles: o espírito é avultado, as claras batem-se à mão. Comer aqueles ovos, comer aquela mousse, não se esquece. Fica cravado na memória e estou convencida de que estes momentos dilatam a alma na mesma medida em que deleitam as papilas gustativas. Estes pequenos laivos de céu estão por aí, só precisamos de ir um bocadinho mais longe no passo contido que nos tolhe os dias.

Podemos ser nós a significar mais as coisas. Como a Teresa que vinha de Leiria, com duas filhas em idade escolar, enfermeira em tempos de pandemia, um fim de semana por mês, até ao Estoril, onde acabava por ficar alojada, para fazer um curso de Programação Neuro-Linguística; eram na verdade três dias, de sexta-feira a domingo, das 9h às 18h30. Senti que aquela colega queria mesmo fazer aquilo, sabia que valia a pena. Ou o Pedro, que conheci num curso de Yoga, onde contou que vai propositadamente de Lisboa à Ericeira, uma vez por semana, para ter aulas com a nossa professora, que sim, vale os 50 quilómetros percorridos para lá e para cá, e o Pedro sabe disso.

São decisões que, para além da vontade, requerem condições, mas onde muitos vêem travões, outros conseguem ver rumo. Gosto de me lembrar destes exemplos quando o caminho mais fácil me pisca o olho.

Semana e meia de férias em Setembro. Resolvemos vir até Múrcia, onde escrevo sob termómetros que não revelam números modestos e qualquer acção por mais simples que seja é sauna certa. Saímos de Portugal, da brisa atlântica, pelo que, para além de atravessar o rectângulo daqueles que resistiram aos espanhóis, atravessámos a restante península, para nós povoada por boa vizinhança. A viagem não se fez em estrada de sensatez: de carro, cerca de mil quilómetros, com temperaturas que foram aumentando à medida que a viagem progredia e, em terras de nuetros hermanos, andaram entre os 30 e os 40 graus, atravessando uma Extremadura que escalda e se cola às Manchegas terras de D. Quixote, fazendo prevalecer os seus extremos em temperatura e paisagem, com planícies que parecem não acabar e nos deixam numa marcha contínua que não avança.

Vale a pena?

Uma viagem extenuante? Sim, para nós, para já, vale a pena. Qual seria a distância sensata para encontrar paz, calor e o Mare Nostrum que acolhe sem hesitação? Que esforço é aceitável para cair na Costa Cálida, onde, dizem, as águas salgadas estão 5 graus mais quentes que no restante Mar Mediterrâneo?

Bem alojados num ayuntamiento que se debruça sobre o Mar Menor, o espírito intrépido continua a pregar partidas: voltamos a pegar no carro e metemo-nos numa viagem de mais 50 quilómetros para chegar a um paraíso, uma reserva verde e azul de mar para nós e para os que buscam o mesmo. Trata-se da praia de um Parque Natural Protegido, Calblanque, cujas entradas são controladas durante o pináculo do Verão, para preservação da fauna e flora. Aqui, estacionamos o carro onde é permitido e depois andamos um quilómetro com a trouxa às costas, como que em peregrinação sacrificial para chegar ao santuário. Cruzamo-nos com quem sabe o mesmo (“há que passar além da dor”) e cai-se no caldeirão caloroso da irmandade, que nos faz sentir entre iguais, sem precisar justificar que sim, que vale a pena. Para além do farnel, levamos cadeiras, que o Paraíso merece ser contemplado de poltrona e ali todos parecem concordar com isso. A carga é pesada, mas quem chega sabe que se paga um preço justo.

A sensatez pode matar a magia das coisas.

São estes pequenos nadas que fazem memória.

Irei a Múrcia sempre que puder.

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