
Como quase todas as obras que estudei na escola (Os Maias constituiu a excepção), não li a Aparição enquanto fingia dissecar a obra de Vergílio Ferreira no 12º ano. Não me recordo se apareceu no exame nacional mas se me tentou boicotar a nota, não foi suficiente para arrastar uma negativa.
Dar uma obra no ensino, muito mais do que instigar o meu gosto pela leitura, quase que o matou. Porque cada leitura (como quase tudo na vida) necessita do momento certo para ser apreciada. Forçá-la, com o diabinho a vociferar um sem número de notas que temos que tirar, frases para dissecar e dividir em orações, identificar figuras de estilo ou relacionar com uma tirada que se encontra no outro lado da obra, tiveram como única consequência afastar-me da Literatura Portuguesa. A disciplina de Filosofia contribuiu muitíssimo mais para o meu gosto pela leitura do que a cadeira de Português B.
Contudo, peguei n’Aparição no primeiro ano da faculdade e, começando a lê-lo com gosto, depressa me enfadei com a leitura e com o tema. O facto de as Álgebras e as Análises não estarem a correr de feição não ajudou o cérebro a libertar-se para poder apreciar a obra como deveria mas ainda assim, insisti na leitura – erro em que entretanto deixei de incorrer – para terminar o livro a odiá-lo.
Aos vinte e dois anos, quando já tratava a Matemática por tu, o momento chegou e, tendo pegado de novo no livro, adorei! Talvez o tema da morte, hoje tão fora de moda (veja-se a cinematografia de Bergman), me tenha despertado interesse mas foi sobretudo a sua antítese, a vida, e a justificação para a nossa breve permanência sob o seu domínio, que me fascinou (e ainda hoje fascina). Quase tudo o que escrevo, mesmo (ou sobretudo) em ficção, gira em torno da justificação da existência, de aproveitar o tempo que recebemos, constatarmos a maravilha que é estarmos aqui e agora; talvez por isso tenha amado a segunda leitura da Aparição; por ter tomado consciência de quão revolucionária pode ser esta descoberta. E se o é para mim, quanto não teria sido para a conservadora população de uma Évora demasiado rural no final da década de cinquenta quando Alberto Soares, o professor destacado por um ano para leccionar no liceu da cidade, aparece com a sua doutrina existencialista e instiga as mentes adormecidas a questionar a natureza da sua própria existência?
Uma obra maravilhosa em qualquer época e qualquer parte do mundo, de um escritor que poderia ser muito mais apreciado se o gosto pela sua leitura não fosse amputado à partida num programa demasiado esquemático, sem conceder aos amantes da Literatura a liberdade de que necessitam para se esquecerem de que são alunos e poderem ser, por momentos, sonhadores.