Agora que morri

Quando o meu avô paterno morreu há uns anos, lembro-me de ter ficado com uma sensação de vazio no peito, não pela morte em si, mas sim por aquilo que fica quando alguém se vai.

Infelizmente, e de formas bastante cruas, violentas e precoces, já tinha tido contacto com a morte, porém em nenhuma delas eu tinha acedido à intimidade, à casa de cada um quando só restam pedaços de uma vida.

O meu avô vivia sozinho, o caminho assim se fez, e a verdade é que eu não tinha feito parte daquela realidade, portanto, aquela casa foi todo um processo de descoberta. Era velha, pequena, um tanto degradada, e ele teria dito que era mais do que suficiente. Por lá andavam algumas fotografias a preto e branco emolduradas em decoração dos anos 50 ou 60, objetos sem qualquer valor sentimental que serviam somente para ornamentar aquilo a que se podia chamar de lar. Uma televisão, um sofá, uma mesa para as refeições e artigos de cozinha à míngua para uma pessoa. No quarto: a cama, uma mesinha de cabeceira que segurava o copo de água necessário para as noites mais quentes, e a roupa e os sapatos pouco dados a luxos. E, ainda que família, quase estranhos a remexerem na sua privacidade, aquela a que nunca tinham acedido. Com ele teria um fio de ouro e, na posse de todos os dias, a mota e o capacete. Ele foi, e isto foi o que sobrou. Sem apegos, sem memórias visíveis aos olhos dos outros, a não ser aquelas que levou consigo. Finou, acabou.

Há pouco tempo estive noutro funeral e julgo haver sempre algum jogo de egos nesta despedida da vida. Não devia ter ido, não achei que fosse, até decidir que ia. A representação da família faz-se sempre por caminhos tenebrosos e, normalmente, no fim da linha. Não partilhamos alegrias em vida, não choramos mágoas. Não dividimos sorrisos, não gargalhamos até doer a barriga. Não nos visitamos, sequer, nessa dita intimidade, todavia quando a morte — aquela coisa dura, forte, feia e definitiva chega —, achamos que devemos estar presentes, que devemos prestar homenagem, respeito. Haverá outra altura na vida em que somos mais hipócritas do que quando ela acaba?

Este sopro que se findou foi sofrido, delicado, com espinhos afiados pelo caminho e, atrevo-me a dizer, com poucas alegrias. Fez-se o que se tinha de fazer, arregaçando as mangas e serpenteando os dissabores das lutas, das perdas, dos lutos, dos choros. A passagem quis-se tão solitária, presa dentro das paredes que escondem as lágrimas, que não houve tempo para mais nada. E no dia do juízo final, aquele em que se espera ganhar alguma paz, o caminho torna a fazer-se só.

Não mais do que vinte pessoas assistem a uma missa que assinala a passagem sabe-se lá para onde. E, embora em vida esse número seja até demais, na morte, e no egoísmo e falsidade que a caracteriza, será de menos, tão de menos… Finou, acabou.

Agora que morri, ainda que só na hipocrisia que é estar viva e acreditar que se vive para sempre, sei que não quero morrer assim. De que vale uma vida inteira de gentes, de sorrisos e de concretizações se elas não se estendem até ao último adeus? Quero todos: os genuínos, os que me conhecem, os que privam comigo, os que gostam de mim, os que me leem de tantas e variadas formas. Não quero que me chamem no passado, porque para os que contam estarei sempre viva no presente das suas recordações. Quero música, quero dança. Quero momentos relembrados e memórias avivadas das melhores e das piores coisas que fiz em vida, porque elas fazem de mim quem sou. Não chorem, as vossas lágrimas nada mais representam do que saudades agora que parto, e, como espero, estarei sempre em vós nos encontros das nossas memórias.

Não me deixem morrer sozinha, mas especialmente, acompanhem-me enquanto vivo.

Finou, porém não acabou.

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