Lembro-me que ela me dava conselhos sábios. Tínhamos uns 17 anos, sentados num lugar qualquer de Lisboa – seria o Bairro Alto? O Cais do Sodré, antes de apanharmos o comboio ou o barco? – e olhávamo-nos. Sorríamos, porque nos entendíamos só com o olhar, só com a presença. Ela dizia-me “ninguém tem nada a ver com as tuas decisões, o que tu decidires para ti é o que deves seguir. Caga neles”. Enquanto ela falava, nuvens de fumo de cigarro saiam-lhe dos lábios, como pequenas brumas misteriosas. Lembro-me perfeitamente da boca vermelha dela, entreaberta e convidativa, escondida entre o fumo. Mas, claro, não me lembro do que é que falávamos. As hormonas dos adolescentes são complicadas, e aparentemente controlam também a memória.
Ela vestia-se com calças xadrez vermelhas e top preto, pintava o cabelo de cores que não existiam a não ser na cabeça dela. Eu achava que era a rapariga mais interessante e bonita que eu já tinha conhecido, com ideias fortes, séria sem se levar a sério. Ela pintava muito os lábios e os olhos, e dizia que não era punk, ofendia-se até, mas tinha todo aquele estilo e revolta dos punks. Eu adorava-a, embora na altura não tivesse real noção disso.
Uns meses mais tarde deixámos de nos falar. Algo natural, pareceu-me; a escola tinha acabado e tinham vindo as férias, cada um para o seu lado, cada um a fazer o seu destino. Só que depois das férias passou também o primeiro ano de trabalho, os primeiros salários, e quando reparei, uma vida tinha passado. Lembro-me de pensar muito nela, de sentir a sua falta, mas de nunca equacionar contactá-la, como se não fosse preciso, como se tudo fosse natural e eu fosse um rapaz bem resolvido.
Um dia cruzei-me com ela na rua. Longe das suas saias xadrez, com mais 20 anos em cima, ela reconheceu-me imediatamente, mas eu demorei uns segundos até conseguir saber a que parte da minha memória ela pertencia. Sorri, a ela e às nossas recordações. Estava loira, de óculos e fato. Mas os lábios… ah, aqueles lábios continuavam vermelhos e convidativos. Contou-me que se tinha tornado advogada e que se tinha divorciado há uns meses. Sorri de novo, e pensei na justiceira e rebelde que ela era. No fundo não me admirava, nem a profissão nem o divórcio. Eu contei-lhe que era designer e que nunca tinha casado, só uns romances freelancer. Convidei-a para um café, e, como um adolescente, voltei a apaixonar-me. O café transformou-se num jantar, o jantar num número de telefone, as chamadas em vários encontros, mensagens, recordações e novas memórias. No nosso primeiro beijo, pensei que era engraçado como o destino funcionava, e talvez tivesse acreditado no destino por alguns segundos.
Hoje estou feliz, e quiçá por isso volte a pensar e a acreditar por segundos que o destino é maravilhoso e que confio plenamente nele. Mentira, eu sei que é mentira; mas hoje não é isso que interessa, e hoje quero acreditar. Sorrio de novo ao vê-la, a olhar na minha direcção. Tem um olhar tímido, como se não nos conhecêssemos, como se não fosse a minha alma gémea. Olho-a de alto a baixo, e digo, baixinho, ao padre “é, ou não é, a noiva mais linda que já viu?”