Separação

Da minha última crónica para esta o mundo mudou. Aquilo que parecia impossível, que era impensável, aconteceu e colocou-nos numa espécie de jogo de roleta russa em que não temos, de forma alguma, a percepção de qual vai ser o resultado. Donald Trump venceu a maioria dos lugares do Colégio Eleitoral que confirma o Presidente dos Estados Unidos da América e tem o caminho aberto para ocupar a Casa Branca nos próximos quatro anos.

Apesar de Hillary Clinton ter conseguido, até agora, mais de um milhão de votos do que Trump, o sistema eleitoral americano está prestes a colocar o mais alto cargo da nação, e um dos mais importantes do mundo, nas mãos do candidato do Partido Republicano, mostrando um grito de revolta e o escalar, a par de outras situações no mundo, de extremismos, nacionalismos e populismos como há bastante tempo não víamos.

Opiniões políticas à parte, até porque a democracia representa, dentro de um sistema, a vontade de um povo, o que me traz hoje a esta crónica é o sentimento de segregação, de separação, de afastamento, que vivemos nos dias de hoje. Creio e sinto que hoje estamos afastados da sociedade, da sua estrutura, da sua essência, o que revela que, de certa forma, estamos também afastados de nós mesmos.

De há bastante tempo para cá, com as mudanças económicas e financeiras que o mundo viveu, mais fortemente, a partir do início do século XXI, as fronteiras afunilaram-se, o tempo tornou-se mais curto e a exigência para connosco mesmos amplificou, a todos os níveis. O dinheiro, que já era, sem dúvida, a grande força motriz do mundo, ganhou um poder ainda maior, controlando-nos e manipulando-nos de uma forma extraordinária. O tempo, esse grande mestre, deixou de o ser na cabeça de muitos, preocupados com o dinheiro, reforçando a velha expressão de que tempo é dinheiro e dando-nos a ilusão de que, quanto mais tempo nos dermos a um trabalho, mais dinheiro chega.

O nosso estilo de vida e as nossas necessidades, as reais e as que nos foram colocadas e incutidas, alimentadas por um magnífico marketing, precipitaram-nos para nos deslocalizarmos de nós mesmos, para um afastar daquilo que é uma das grandes e cruciais estruturas que nos mantêm vivos, a sociedade, liderando-nos num caminho, cada dia mais profundo, de autodestruição. Parece um cenário catastrófico, mas não é, é apenas a realidade, e a prova de tal está no aumento estrondoso de doenças como o cancro e outras autoimunes, nas pandemias que nos têm massacrado nos últimos anos, no número cada dia mais crescente de casos de depressão e outras doenças do foro psicológico, nos idosos sozinhos e abandonados, nas crianças depositadas em escolas durante horas a fio, nos sem-abrigo, sem falar nas guerras, nas fomes, na pobreza.

A sociedade, como estrutura, foi afastada pelos nossos egos, pelo crescimento ininterrupto a que nos temos acostumado e que nos é fomentado. Nas escolas de economia advoga-se que os recursos são limitados, mas incitam-nos sempre a crescer, formando um paradigma que vivemos na sociedade e que se traduz, em cada um de nós, em frustração, dor e medo, muito medo. Depois, é simples, o populismo alimenta-se desse medo e coloca-nos à frente a demagogia em forma de pessoa, o não dizer nada que convence, as frases feitas e boçais que alimentam egos e nos dão a ilusão de um novo rumo. Pura ilusão alimentada por mais medo e que nos leva ao racismo, à xenofobia, à discriminação religiosa, à homofobia e tantos outros comportamentos que contrariam tudo o que os grandes Mestres nos ensinaram, que todos provimos da mesma Fonte e que devemos amar os outros como a nós mesmos.

Curiosamente, ao revisitar a frase acima – amar os outros como a nós mesmos –, e vendo tantas atitudes como as atrás descritas, que nos têm levado a guerras e a destruição, compreendo que, na verdade, o problema está na segunda parte da frase. Não nos amamos, não olhamos para nós como deveríamos, não reconhecemos a beleza do nosso ser, pois fomos, desde a mais tenra idade, formatados para sermos apenas mais um, um número. Desde a escola, passando pelo Estado, até à organização onde trabalhamos, somos isso, números que nos são atribuídos por algo superior a nós, levando-nos a pensar que somos pequeninos, insignificantes, apenas mais uma ovelha no meio de tantas outras. Quando me passei pelas ruas cheias de gente, nomeadamente às horas de almoço ou de saída, é isso que vejo, ovelhas, frustradas, marcadas, silenciosamente revoltadas e magoadas, a movimentarem-se de um lado para o outro.

Acredito que o nosso caminho é em direcção à unidade, primeiro e acima de tudo de nós com o nosso espírito, com a nossa verdadeira identidade, não a do ego, mas a do Eu. Nesse sentido, os tempos que vivemos são reveladores da podridão em que estamos baseados, em que temos construído as nossas vidas, os nossos sistemas, as nossas sociedades. Já não é tempo de esquerdas e direitas, de eu e tu, é tempo de nós, de união e foco comum em prol de um bem maior, recompensando aqueles que lutam por mais, que não ficam no sofá à espera que o euro-milhões lhes caia ao colo ou que as oportunidades venham ter ao seu encontro, mas que também proteja aqueles que, face aos desafios, tropeçam e caiem, que necessitam de um impulso, que procuram ser felizes.

Acredito que este separatismo que hoje vivemos tem um propósito, que esta névoa bafienta de outros tempos, não tão distantes quanto isso, de radicalismos, ditaduras e extremismos, que ainda existem porque, socialmente, não fomos capazes de os curar em nós, atormentam-nos para que possamos abrir os olhos e ver o que está mesmo à nossa frente, projectando para dentro de nós mesmos, para as nossas vidas, para quem somos e o que pretendemos. Por vezes, para podermos ver a luz que brilha lá fora e sentir o calor do sol nos nossos rostos, temos de abrir as portas ou as janelas, deixar o ar entrar, separar aquilo que está unido, que nos protege, mas que já não faz sentido perante tanta beleza que urge em chegar até nós.

Na mesma semana em que acordámos atordoados com a notícia da eleição de Trump, outra notícia, daquelas que gostaríamos que fossem impossíveis, nos entristeceu, a morte de Leonard Cohen. Curiosamente, ou não, em tempos de separatismos e divisões, o Universo manda-nos sinais de beleza ímpar aos quais, acredito, nos deveríamos abraçar. Entre as muitas notícias da morte de Cohen, pude ler que, em Agosto deste ano, após a partida da sua musa e grande amor, Marianne Ihlen, um mês antes, Leonardo Cohen escreveu-lhe uma carta onde dizia: “Sabes Marianne, chegou este tempo em que estamos realmente tão velhos e os nossos corpos estão caindo aos poucos que acho que vou seguir-te muito em breve. Sei que estou tão perto de ti que se esticares a tua mão, acho que consegues tocar na minha.”

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