A minha luta volume 2: um homem apaixonado

Da Noruega para a Suécia. Estocolmo, a bela capital nórdica. Knausgård mudou de país, mudou de vida.

Ninguém tem uma vida plena de coisas elevadas, apenas de planos intelectuais superiores. A vida, mesmo a de um homem culto, está cheia de banalidades, trivialidades, acontecimentos banais e pensamentos sem marca. Cheia de prazeres quotidianos, corriqueiros, mas esses podem até ser as marcas de água de tudo o que de grande podemos ter e fazer na vida, afinal. Uma discussão familiar, um desencanto, desilusão, ou uma tremenda loucura, porventura corajosa, em proveito de algo maior que nos possa acontecer, podem ser os tudo-nadas que nos transformam e nos revelam um mundo e uma vida que, de outra forma, não iríamos conhecer.

imageTudo isso nos passa pelos olhos e pelas páginas percorridas, numa azáfama para chegar ao fim, na obra autobiográfica de Karl Ove Knausgård.

Saído da Suécia, sem projecto, sem rumo, de uma vida de casado, encontra-se por mero acaso com a futura segunda mulher. Porém, neste homem e nos seus livros, nada é assim tão fácil como uma leitura superficial pouco atenta possa querer parecer. Há desde a mais simples e casual experiência e descrição do que pelas ruas observa, na descoberta da bela Estocolmo, aos episódios reincidentes de embriaguez, ao mais tocante e inebriante enamoramento, ou talvez se deva dizer, a loucura cega por uma mulher que o agarrou à Suécia e muito mais ainda a ela, quase o aprisionando num amor que nem a sua outra paixão o deixava cumprir.

Vieram as surpresas, chocantes e completamente inesperadas do que a si mesmo fez e do que Linda o seu amor, neste segundo livro, e sua actual mulher, a si mesma ia fazendo. Vieram os dias de paixão mais fantásticos e os dias de discussões que nos fazem temer o pior, para eles.

Knausgård derrama toda a sua energia da escrimageita por nós. A mim, já o havia dito do primeiro volume (A morte do pai), surpreendeu-me, por me deixar agarrado, literalmente a estilo a que nunca me pensara converter, estilo diário (sem o ser verdadeiramente), estilo auto-biografia, ainda que romanceada. Derrama a escrita e a sua vida pelos dias em que os vamos lendo.

Tenho-o lido em transportes públicos, nas viagens diárias, com a pena e desconsolo por não poder ler de um fôlego. Tenho-o lido um pouco ao ritmo que ele escreve, pelas ruas, pelo meio de gente que ele descreve, noutra cidade, embora, como ninguém.

Como ninguém ou como poucos, nos transporta de uma conversa sobre literatura, ou teatro, ou poesia ou, ainda, filosofia para a observação dos outros e de tudo o que o rodeia, e tudo o que pensa quando tudo isso o rodeia e, de súbito, num voo que penso só ele consegue, estamos noutro local, noutro tempo, com a descrição de algo que lhe aconteceu, há pouco ou há muitos anos. Como consegue estes voos estonteantes num ritmo e linguagem que não nos saturam é mistério. Será preciso lê-lo para entender. Levo umas novecentas páginas de Knausgård, em dois volumes, e, ao contrário de algum cansaço, arranjou-me um problema com a expectativa do terceiro volume.

Sai sem rumo do primeiro casamento e do seu país natal, entra noutro país vizinho e continua perdido, o amor que leva consigo é o de escrever, e de, com isso nos contagiar. É despretensioso, não nos transparece qualquer veleidade de grande escritor, de escritor de referência, que me parece poder vir a tornar-se. Sai de uma vida e entra numa outra que lhe parecia não ir conseguir. Sente-se a angústia nas suas palavras, como se vem depois a sentir a exultação e a perdição sentimental. É de amor que fala neste volume, Um homem apaixonado, e ficamos curiosos pela mulher alvo dessa paixão. Com a mesma coragem que nos habituou, confessa-se na fraqueza, nunca se mostrando confiante, a desilusão pela outra confissão, da sua apaixonada, de que ele não lhe interessava. Contudo, algum temo e tudo muda. Linda é a mulher para ele, mas um perigo também, não se lhe reconhece um contraponto, um desiquilíbrio saudável ao casal, duas faces de uma moeda, mas uma moeda com uma só face. São tão idênticos e não parece que ele tenha entendido isso. Ele sofre, ela sofre depois. Pelo meio, os dois são encantadores, como todos os apaixonados, quando saem à rua com o tal sorrisinho tolo na cara…

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É dos filhos, também este volume que o mostrou como pai. É desse casal que gostaríamos todos de ter como amigos, também, este livro.

É nosso, de todos, pela coragem que gostaríamos provavelmente de ter, pelas confissões do que pensa de todos os que são da sua vida e, acima de tudo, de novo, pelo que de si nos mostra, de chocante, das asneiras que foi fazendo. Contudo, é um homem que nasceu para isto mesmo – escrever. E que nunca páre!

A escrita apaixonante e apaixonada deve fazer muito o encanto do público feminino, o escritor diz do que escreveu a Linda, o seu amor, o que muita mulher gostaria de ter lido, do seu, sobre si. Linda baixou a guarda, quando ele finalmente, após tanto momento de hesitação lhe mostra o que pensa dela e tinha escrito, mas afinal di-lo de viva voz. E com isso a agarrou, totalmente.

Estocolmo também aqui está nestas páginas fantásticas, de tantos ritmos, de tanta paixão, de momentos disparatados, de simples descrições e de pensamentos a roçar o erudito. As suas ruas têm de ser re-encontradas, após a leitura deste segundo volume das crónicas e coragem e lição de literatura, de Karl Ove Knausgård, o escritor.

Confesso que, quando o comecei a ler, não ia com demasiadas expectativas. Como igualmente reconheço que Knausgård se mostra a cada livro, ser uma dos grandes, ao seu estilo e sobre si mesmo. É imperdível este A minha luta volume 2 – Um homem apaixonado.

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