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A apanhadeira de malhas

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Menina. Menina foi o nome que lhe ficou. O do registo e baptizado arquivou-se num qualquer livro grosso de esquecimento. Solteira e um pouco melancólica, a janela era o seu mundo. Época de parcos recursos e de gente remediada que mostrava o que não tinha para não ser falada. O barco era de todos e cada um tinha os remos que conseguia.

Isaura andou na escola como qualquer miúda do bairro. Escola feminina onde as raparigas davam o braço umas às outras e os grupos não tinham segredos. “Ela gosta dele, mas não lhe digas que sabes. Guarda para ti.” Divulgado até à exaustão. Batas brancas que se vestiam e que cobriam as vestes que cada uma podia trajar. As meninas usavam laços no cabelo e meias até ao joelho.

Pessoas que honravam os ditos comuns e respeitavam as normas que lhes permitam respirar. A longa noite que se entranhou em tantos que jamais poderá sair. Tempos de planos feitos pelos pais e seguidos pelas filhas. Tal como os mil dogmas, sem contestação nem palavras. Os pais querem o melhor para as filhas.

Naquela casa houve desejos de continuidade. Eram casamentos que foram pensados e desejados como futuros risonhos. Isaura apenas ouvia e pouco mais. Crescia e fazia tudo que estava ao seu alcance. Nunca houve um namorado nem um olhar romântico. Nada. Um vazio. Um coração que batia sem eco audível.

Os pais corcundaram e os cabelos, lentamente, grisalharam. Os dias deram lugar às noites e o frio entranhou-se nos ossos e na alma. Os pais deixaram de respirar e a Isaura ficou cheia de orfandade. Perdeu-se na casa que sempre fora sua, a única que conhecia e chorou lágrimas do coração.

A vida segue e depois de se despedir dos seus, cheia de dor, após arrumar as ideias, retirar o pó de todos os móveis e embrulhar com amor e carinho todos os naperons feitos pela mãe e de guardar os álbuns de selos do pai, abriu a janela.

Andar térreo, com vista directa para a rua, sons que lhe entravam sem pedir autorização, vida que convidava a sair. Era o tempo das meias de vidro, dos collants que custavam fortunas e das pernas moldadas. Havia que se poupar. O dinheiro custava muito a se conseguir.

Afastou a cortina de croché, feita pela mãe, foi buscar o suporte eléctrico e ligou-o à tomada. Ouviu-se um som característico: ZZZZZZZZZ. A máquina de apanhar malhas ainda funcionava. Escreveu, com uma letra bonita e redonda, “Apanham-se malhas”, colocando-o no vidro.

Sentou-se e esperou. A dúvida instalou-se. Seria conveniente abrir a janela. A vergonha apoderou-se dela. Foi assim toda a vida. Lutou com vigor. Respirou fundo. Deus é pai e sabe ajudar quem precisa. Ela era devota e muito crente. Acreditava.

Chega a primeira cliente. Cumprimenta-a com alguma referência: “Como está? Lamento muito a partida dos seus paizinhos. Tenha coragem.”  Isaura tinha isso tudo e ainda mais anos para viver. Não tinha era dinheiro. Precisava de arriscar. Não tinha já mãos para a amparar. Estava por sua conta.

Agradeceu e depois esqueceu-se do resto da conversa. Viu as meias. Estavam mal, mas não tanto quanto ela. Fez um preço e sorriu. A cliente aceitou. “Sabe? São muito confortáveis.” Pois sim. Andamos todos ao mesmo, na luta para sobreviver, pensou para si.

Ligou o aparelho e o ZZZZZZZZ ficou nítido. Ali era um posto de trabalho. Isaura, a menina das malhas, aquilo que deslizava nas meias caras, um nome dado com carinho, ganhou outra vida. As conversas tinham agora outro tom, o rir tinha valor, as vidas, cheias de luz, eram melodias de amor e de esperança.

Renasceu. Afinal havia mais do que conhecia. Abriu asas e mudou tudo em casa. Ficou mais jovem, mudou de estilo, ousou sair de casa, deitou fora o passado e apostou no futuro. Fez-se luz na sua vida. Olhou para a sombra e riu. Podia ser feliz.

As meias e as muitas malhas podiam ser o seu trabalho, mas eram, também, a sua alegria e a força para continuar. A janela era o seu mundo, a novidade que a abraçava. Talvez o ZZZZZ não fosse tão triste se houvesse um ombro para a amparar.

Das suas hábeis e despachadas mãos eram resgatadas as meias, das bem dispendiosas, que ainda tinham préstimo e que enfeitavam as pernas das senhoras da zona. Pareciam novas e tudo regressava ao inicial. Ficou logo conhecida e muito estimada.

Um dia acontece o milagre e, após um breve e delicioso namoro, Isaura voltou a ser uma menina de vestido branco, só que este era bem mais comprido. O véu não lhe toldou a visão e o futuro só podia sorrir. O ZZZZZ continuou, mas agora era saboroso e com som de companhia e compreensão. Tudo se ajeita quando há vontade.

Quem espera sempre alcança. De menina não passou, que o nome lhe ficou, mas a sua vida mudou. As meias, a intimidade de tantas e tantas mulheres, as misérias e as glórias, eram passadas pelas suas mãos em momentos de ZZZZZ. A vida ainda tem surpresas que valem a pena.

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Margarida Vale
A vida são vários dias que se querem diferentes e aliciantes. Cair e levantar são formas de estar. Há que renovar e ser sapiente. Viajar é saboroso, escrever é delicioso. Quem encontra a paz caminha ao lado da felicidade e essa está sempre a mudar de local.

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