Não é novidade o meu amor e admiração por Sherlock Holmes, que considero practicamente uma pessoa e não uma personagem. Uma criação magnífica e eterna de Sir Arthur Conan Doyle, que lamentamos que não exista na vida real. O mais curioso é que Conan Doyle não apreciava o sucesso que os seus policiais tiveram, uma vez que considerava a literatura policial como sendo de segunda categoria, e inclusive tentou “matar” Sherlock Holmes. Contudo, o público não deixou e, após vários protestos, ele teve de “ressuscitar” o famoso detective – e nós agradecemos, pois graças a essa decisão, embora contrariada, ainda hoje se fazem trabalhos extremamente bons e actuais sobre Sherlock.
O livro Sr. Sherlock Holmes (em inglês, A slight trick of the mind), de Mitch Cullin, é, sem dúvida, um desses exemplos.
É importante referir que não é um policial, mesmo que o nome seja naturalmente ligado a esse género. Embora haja, obviamente, vários mistérios ao longo do livro, para mim, é um romance sobre a natureza humana, em várias vertentes.
Em relação à famosa personagem, é muito interessante a abordagem de Mitch Cullin: aqui, deparamo-nos com um Sherlock idoso, com mais de noventa anos, que começa a sentir as debilidades intelectuais da idade – principalmente a perda da memória – e que tenta lutar contra elas. Vivendo longe de Londres e tentando ignorar os turistas para quem se tornou um ídolo, Sherlock parece desligado dos casos que resolvia com o Dr. Watson, mas há um em particular sobre o qual sente que precisava de escrever e pensar. Com Sherlock vivem a governanta Sra. Munro e o filho dela, Roger, um rapaz muito curioso que, contra todas as expectativas, vai criar uma grande amizade com Sherlock Holmes.
Tantos aspectos interessantes sobre os quais escrever!
Gostei muito do facto de haver três histórias diferentes – o presente, 1947, onde apreciamos a vida de Sherlock em Sussex e a amizade com o pequeno Roger; um passado imediato, a visita ao Japão em busca de pimenta-de-sichuan, um grande interesse de Sherlock, feita há umas semanas; e um passado remoto, um caso de 1902 que Sherlock precisa de resolver agora. Foi ter o prazer de três mistérios num só livro, de ver a maravilhosa mente de Sherlock Holmes em acção, de forma bastante diferente e característica em cada uma das histórias.
O meu maior medo e a maior realização do autor foi conseguir que o público reconheça a personagem neste livro, já que estamos a falar de uma criação de outra pessoa. E não só conseguiu respeitá-la ao máximo como também trazer algo de inovador para tornar o livro apelativo. Embora este seja um Sherlock idoso, com as capacidades afectadas, com um passado e uma vida mais longos do que tinha, aquando da morte de Conan Doyle, Mitch Cullin consegue dar-nos tudo o que conhecemos do detective: a arrogância tão característica, a frieza, a sua mente analítica, as reacções e pensamentos peculiares e as deduções magníficas tão próprias de Sherlock.
Adorei a forma como Sherlock cria relações com as várias personagens, a marca que consegue deixar em cada uma das histórias e as cicatrizes com que sai de cada uma também. Lembremos que o Sherlock de Conan Doyle vivia para os seus casos e que, a um nível mais íntimo, só se relacionava com Dr. Watson, o irmão Mycroft Holmes e a governanta Mrs. Hudson, mas que agora, por força das circunstâncias e da vida, deve suavizar um pouco quem era e deixar-se tocar por cada nova pessoa (sempre de uma maneira muito “Sherlock”, claro). Bastante interessante e a razão pela qual creio que é um romance sobre a natureza e as relações humanas, são todas as emoções – boas e más – que Sherlock retira dessas experiências e a maneira como aprende a lidar com algo a que não está habituado.
Apesar de ser um livro muito bonito, fiquei extremamente triste. Não só pelos vários acontecimentos trágicos que vamos conhecendo e pelos danos que vão deixando em Sherlock, como é natural, mas também e principalmente pela forma como o arrogante e magnífico detective se vê nas garras da senilidade. Uma mente tão perfeita, poderosa e brilhante vai-se apagando e perdendo, pouco a pouco, sem nada que possamos fazer, e com esta trágica realidade (que nos pode fazer lembrar casos tão próximos), o autor consegue dar uma humanidade dilacerante a Sherlock Holmes.
Um agradecimento enorme à Topseller / 20|20 Editora pela oferta. Um livro espectacular que vale mesmo muito a pena e que não vai decepcionar os fans do eterno Sherlock Holmes.