A manhã de 9 de Junho de 2013 foi surreal para os argumentistas da série Person of Interest, o drama de ficção científica centrado na vigilância governamental. Dezasseis meses antes, escreveram um episódio sobre um jovem delactor da N.S.A, com 33 anos e que trabalhava como analista na organização governamental. De seu nome Henry Peck, descobre que a sua agência está a realizar vigilâncias ilegais em massa e decide marcar um encontro com um jornalista para contar tudo o que sabe, mas depressa vê-se em fuga de um esquadrão de assassinos governamentais. No episódio intitulado “No Good Deed”, que foi para o ar em Maio de 2012, Peck, em determinado momento, diz: “O nosso governo tem estado a espiar-nos e estão a tentar matar-me, para encobrir o que têm estado a fazer.”
Mais de um ano depois desse episódio ter sido transmitido, descobriu-se que, afinal, havia um delactor na N.S.A – Edward Snowden. Tal como a personagem da série, Snowden tem uma face jovem, muito cabelo castanho e um conjunto de valores que entrava em choque com as suas tarefas numa agência de espionagem. No artigo do The Guardian em que Snowden revelou tudo o que sabia, afirmou que não poderia, conscientemente, “permitir que o governo dos EUA a destrua a privacidade, a liberdade na Internet e as liberdades básicas de milhões de pessoas espalhadas pelo mundo, através de uma gigantesca máquina de vigilância que estão a construir em segredo.” Desde a sua estreia, em 2011, Person of Interest tem desenvolvido a ideia de uma máquina de vigilância de forma literal. No mundo em que a acção da série decorre, o governo construiu um sistema de computador inteligente chamado de “Máquina” e que vasculha por todos os e-mails enviados, ouve todas as conversas telefónicas e observa todas as câmaras de segurança. Com margem de erro zero e sem a intervenção humana, a “Máquina” permite que a N.S.A. e a C.I.A. tenham acesso à identidade de possíveis terroristas que estão no mundo todo, mas, como tem acesso a tudo, este aparelho também consegue prever, quando pessoas comuns estão a planear crimes violentos. Já que as entidades governamentais ignoram estas previsões, cabe a Harold Finch, o génio informático que inventou a “Máquina” e que vive isolado do mundo, a resposta a estas necessidades. Em parceria com um antigo soldado das Forças Especiais, John Reese, Finch lidera uma equipa de hackers, polícias e antigos militares, cujo único objectivo é o de parar crimes antes que aconteçam.
O pormenor mais interessante no funcionamento da “Máquina” é o seu irredutível respeito pela liberdade de cada cidadão, nunca revelando informações pessoais sobre os alvos que vigia e divulga apenas o número de Segurança Social para a sua identificação. A ideia para este funcionamento da máquina de vigilância surgiu da leitura do livro The Watchers, um romance escrito por Shane Harris e centrado em John Poindexter, o responsável pelo programa Total Information Awareness, que cria um sistema informático capaz de vigiar o mundo inteiro, mas que representa os suspeitos através de um código numérico. Graças ao mistério que a “Máquina” deixa no ar, cada episódio começa sem que seja claro que a pessoa identificada seja “uma vítima”, ou “um criminoso” e só nos é permitido saber que essa pessoa está envolvida numa má situação. Como resultado, grande parte da energia impulsionadora da série provém desta configuração ambígua e de uma certa perturbação perante a sociedade altamente vigiada que este grupo de heróis representa, mesmo que estejamos a torcer por eles. Olhando para as suas falhas enquanto seres humanos, as personagens apresentadas fazem de Person of Interest numa série sobre expiação.
Há 10 anos, esta série iria parecer demasiado falsa, uma mistura em termos de atmosfera e imagética de Minority Report, Sneakers e Batman. Hoje em dia, no entanto, parece mais um vislumbre do que nos espera no futuro, ou pior, um retrato muito fiel do que é o nosso presente. As revelações de Snowden permitiram aos criadores da série alterar a forma como abordavam a série, sendo que deixaram de estar constantemente a tentar convencer as pessoas sobre o seu conceito subjacente. O sistema de vigilância inteligente já não era parte de uma ficção e era sim uma realidade, que corroborava, mais do que nunca, as escolhas e a sensibilidade de Finch, ao longo da história. Simultaneamente, é impossível não ficar alarmado por saber que o foco dos sistemas de vigilância caminha a passos largos para ultrapassar a simples invasão de privacidade para atingir a previsão de possíveis crimes. Alguém com as capacidades que a personagem de Michael Emerson demonstra ter pode, recorrendo a dados abstractos, delinear determinados tipos de comportamento, as hipóteses de que determinado acontecimento tem de ocorrer e que características podem ser atribuídas a certas pessoas.
A “Máquina” pondera factores como a motivação e a predisposição, quando as observa através das câmaras de vigilância, demarcando com uma retícula vermelha e branca as faces daquelas pessoas que considera serem um perigo. Observar a facilidade com que são detectados os perfis perigosos, permite-nos pensar sobre o futuro da vigilância computorizada, já que a eficácia garantida do sistema criado deixa-nos fazer questões perturbadoras sobre o caminho que estamos a percorrer como sociedade. Por exemplo, como é que se impede que governos como o do Irão, ou empresas privadas façam o mesmo que a N.S.A. está a fazer actualmente? Como é que iremos lidar com o facto de que os nossos dados pessoais nunca poderão ser apagados, já que a série claramente nos demonstra que a privacidade de informação é uma miragem?
No centro de Person of Interest, existe uma tenção entre poder e falta de poder. Os heróis da história, por terem acesso à “Máquina”, aparentam, por vezes, terem super-poderes: sabem onde ir, quem observar e o que fazer. Ao mesmo tempo, são peões que seguem as ordens que lhes são dadas, deixando que seja um computador a indicar o caminho em direcção aos vilões, no mesmo sentido em que muitos de nós deixamos que um site de encontros nos dite quem é que achamos mais atraentes. Numa das cenas mais memoráveis da série, Samantha Shaw e Reese estão em fuga num carro e seguidos por um batalhão de carros de polícia. A “Máquina”, a falar com Reese no telemóvel, como se fosse um GPS, dizendo-lhe para virar à direita a cem metros de onde está, onde encontram um helicóptero, que usam para fugir. É uma sequência de acção representativa do caminho que a série tem trilhado, desde o seu início – o balanço de poder tem, aos poucos, passado a favorecer a “Máquina”. Os dados deixam de ter um comportamento passivo, em que estão apenas ali para a nossa utilização, e passam a ter uma acção mais activa, com a informação a começar a comandar o nosso destino. É uma transacção simples, mas igualmente avassaladora, uma vez que os sistemas de computador, brevemente, irão ditar, de forma subtil, os caminhos que todos percorremos.
Dividida entre a tecnofilia e a tecnoparanóia, não é certo como será o fim de Person of Interest, apesar de haver indicações sobre a possibilidade de terminar com a existência de várias máquinas espalhadas pelo mundo. Afinal de contas, se estas estruturas massivas que construímos podem salvar vidas, porque é que haveríamos de as desligar, ou deixar de construir?