O piano no meio da rua parecia uma pequena revolução. Ele não sabia que horas eram, os relógios estavam todos parados e a noite queimava-se no papel do cigarro. Tinha o corpo feito de mágoa e sentia-se capaz de morrer a qualquer instante, de chorar e implodir e desaparecer, porque os corações partidos não sabem respirar.
Sentou-se e experimentou uma tecla. O eco gigante na rua desabitada traduzia a sua dor. Espantou-se. Tocou de novo, a tremer, desajeitado, desafinado com a vida. De novo. E de novo e de novo. Limpou as lágrimas. Precisava de sentir algo. Algo. Qualquer coisa. Qualquer coisa que não fosse aquela tristeza oca que o sufocava. Porque os corações partidos não sabem como respirar de peito vazio.
Experimentou outra tecla. Olhos fechados. E outra. Quase num sussurro. Devagar, descobriu as notas exactas para descrever a madrugada, para dançar com as sombras das saudades, para sangrar até ser paz. Tocava como se carregasse nos pontos certos para se manter vivo. Nem que fosse só por uns momentos, já que os corações partidos não sabem respirar imersos em ausências.
Quando parou, estava exausto. O tempo continuava a não existir. Acendeu um cigarro. O fumo misturava-se com a escuridão e com a reverberação que o piano deixava atrás de si. Sim, era uma revolução. Um manifesto pela liberdade. Um grito pelos direitos dos corações partidos que não sabem respirar como os outros corações.
O corpo continuava a ser mágoa e ele continuava capaz de morrer naquele instante. Ou talvez de viver para sempre. A tristeza tinha uma estranha beleza, conseguia ser caos, e no caos tudo é possível. Inclusive voltar a respirar. Mesmo que não seja como sempre foi. Mesmo que se tenha de aprender. Mesmo que doa. Abrindo as cicatrizes, inspirando o espanto e tornando-se livres. É assim que os corações partidos voltam a respirar.