black and white typewriter on green table

Somos o nosso umbigo

As árvores ainda guardam as gotas de chuva da última noite. Não foram baldes, senhor, não, foram algumas barragens bem abertas no céu de outono já escuro. O clima não pede para sair da cama, mas o tempo, sim. Temos horas para cumprir, um horário definido para alimentação, medicamentos e fisioterapia.

Enquanto se prepara o pequeno-almoço, vejo-o a olhar para a terra encharcada, quase se sente o cheiro de terra molhada e lama; não cabe na ideia de ninguém visitar o parque do outro lado da rua durante o dia de hoje, muito menos quando de rodas se depende. Preparamos as pequenices quotidianas e o essencial para o dia — um impermeável que ocupe corpo e cadeira de rodas, que a chuva, quando nos chega, não dá tréguas. O caminho para a fisioterapia é feito numa ambulância, dispensada pelos bombeiros voluntários para o efeito, mas longe de ser mágica no caminho que separa a estrada do edifício de apartamentos, já de si um luxo, a possibilidade de se desenrascar nas saídas e entradas, nos afazeres de todos os dias, no conforto de casa.

O resto, esse, é mais difícil. Os passeios largos para a cadeira de rodas escasseiam, bem como as lojas com acesso ao meio de transporte indispensável; os transportes públicos preparados escasseiam; são um sonho ainda não sonhado por alguém, talvez no nosso tempo, se tudo correr bem. Estas barreiras podem ser vencidas numa ou noutra feliz coincidência de fatores; lá dentro, as barreiras formam novas dificuldades. As casas de banho, julgávamos nós obrigatórias, perderam-se nos papéis legislativos, salvem-se disso as grandes superfícies e espaços de serviço do Estado. Pessoas também as há, verdadeiros pilares do obstáculo já existente. Não sabem, não conhecem os direitos e deveres. A boa intenção serviu na Idade Média; já não cabe no nosso tempo.

Nenhum de nós julga o outro, o estranho ou o conhecido, pela ideia da dificuldade imposta por uma cadeira de rodas. Podemos ter uma ideia clara do que ainda há para fazer para melhorar, não facilitar, a vida de quem necessita desta cadeira de quatro rodas, duas como pilares, estes ausentes da sociedade, e outras duas que mandam a direção a tomar. O que precisamos, senhor, não são rosas, mas sim integração. As cidades continuam pensadas para carros, automóveis e veículos de quatro rodas. Tudo a mesma coisa, a cidade preparou-se a triplicar para os receber. Quem vive ou quem passa fica para quarto plano, longe da planificação dos gabinetes, onde se inicia esta discriminação fantasma: não é cultural ou expressiva; tem por base o desconhecimento e a ignorância própria de quem prefere não ver, não passar, não fazer caso. Tem por base o egoísmo de quem pensa que todos somos um, o mesmo, quem decide ou executa.

A ambulância volta em três tempos, já vejo as rodas a subir a rampa, o luxo ostentado neste prédio. A chuva deu trégua, o corpo e a máquina estão secos, o gato ficará contente pelo regresso. Independente à sua conta, espiritual e monetária, prepara a sua leitura, a continuação dos seus exercícios ou o retomar de um dos seus passatempos preferidos. Já não sei se vê o que vejo lá fora. Não falamos do tema. Para ele, tudo se resolve. Aquelas árvores ainda estarão cá na nossa partida, esperamos que testemunhas de alterações na sociedade, com a perceção de quem somos para o outro: eu vejo-te, tu vês-me, somos assim, precisamos disto assado.

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O mundo num autocarro

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