Talvez 2001, Odisseia no Espaço tenha sido o primeiro filme que me marcou a sério, ainda que na altura não conseguisse explicitar a magnitude do que aquela experiência representou e que ainda hoje trabalha em mim quando nele penso ou o revejo.
Foi a escolha de António Vitorino em O Filme da Minha Vida, que passou durante um tempo aos sábados (ou domingos?) à noite na RTP2. Gravei-o e vi-o numa tarde de semana, sozinho em casa. Julgo que tinha dezasseis anos pois tenho ideia que o próprio político referiu, na conversa prévia que antecedeu a passagem da obra, ter a mesma idade quando o viu pela primeira vez.
2001 ensinou-me que não perceber toda a dimensão do que estamos a experienciar pode ser a forma mais profunda e humilde de entrarmos numa obra. Talvez como quem aprecia pintura (não é o meu caso) pode ficar longos minutos a olhar para um quadro e ainda assim, ter noção da infinidade de sensações por experimentar.
2001 foi um filme que me deixou sem palavras, pensamentos ou opiniões. Sabia que trazia algo especial e, sobretudo, algo onde eu reconhecia qualquer coisa minha, apesar de não o saber exprimir na altura. Kubrick conseguiu trazer para a nossa realidade tridimensional uma experiência passada para lá das dimensões da compreensão, na fronteira do que os nossos sentidos são capazes de aflorar (conseguimos imaginar um cubo (3D) rebatido numa folha de papel (2D), mas já é mais difícil representar um hipercubo (4D) “espalmado” nas nossas três dimensões. Se sairmos da geometria e alargarmos esta concepção para toda a existência, temos um vislumbre do que representa para mim 2001, Odisseia no Espaço.
Foi o primeiro filme a mostrar-me uma existência extra-terrestre que não só não tem que vir de homenzinhos verdes com antenas, dois braços duas pernas, dois olhos, mas também não tem que ter um olho e três pernas. Não tem que emitir ruídos na frequência que nós, terrestres, ouvimos. Não tem que ter uma forma humana, animal ou vegetal. Pode estar para lá dos limites da compreensão e ainda assim contactar connosco. 2001 mostrou-me também que a evolução pode nascer de disrupções plantadas do exterior como o surgimento de um monólito capaz de estar na origem da luta pela sobrevivência na pré-história como de levar o Homem para lá de Júpiter, no ano futurista de 2001 (a História repete-se). A um nível mais terreno, 2001 traz-nos a luta da Máquina contra o Homem na figura sinistra e fascinante de HAL-9000, o computador inteligente e aparentemente infalível que conduz a Discovery para o outro lado de Júpiter e talvez comece a experimentar sentimentos demasiado humanos.
Não quero ler a história original A Sentinela, de Arthur C. Clarke, pois pretendo manter as vias da imaginação abertas para explorar novas possibilidades a cada visualização. O final é mesmo isso: uma experiência em aberto para a qual afloro uma possibilidade que trago, não desde a primeira vez que assisti, mas que foi acontecendo, estando no entanto sempre sujeita a revisões (tal como a Ciência).
Por fim, 2001, Odisseia no Espaço é uma experiência sensorial maravilhosa: feito em 1968, o filme foi um marco visual, com os Efeitos Especiais a darem o único óscar da carreira de Kubrick (!); tendo as obras de Strauss como banda sonora quase única, não só a imensidão silenciosa do infinito é relevada pela space opera que é este filme, como a juventude da época começou a ouvir música clássica numa altura em que a revolução consistia em cortar com o passado.
2001, Odisseia no Espaço, a verdadeira obra bigger than life, resistiu ao tempo e às críticas para, chegados a 2022, cinquenta e quatro anos após a estreia e vinte e um anos depois do ano do futuro de 2001, continuar muito à frente do seu tempo. Talvez visceralmente à frente, quando uma obra que decorre tão ao seu ritmo, caminhando por um argumento de quarenta minutos em duas horas e meia de filme, se está nas tintas para esta vertigem apressada com que galgamos a vida.