Descobriu que conseguia ler borras de café quando era criança. Descobriu por acaso, ao olhar para uma chávena e ver uma imagem tão clara como as fotografia que a mãe guardava em álbuns. Ninguém conseguia ver nem ler nada, mas para ela era como se fosse um livro aberto, conseguia perceber na perfeição o que o café lhe explicava.
Mas não tardou em desiludir-se com esse dom.
Arrepiava-se e sentia-se envergonhada quando pensava nisso, como querendo que fosse um momento embaraçoso de um filme qualquer, de outra vida qualquer.
Mas rapidamente passava esse nó na garganta. Afinal, considerava-se uma mulher feliz. Tinha batalhado muito para chegar a um estado de paz e satisfação que se adequasse ao espírito selvagem que ela parecia carregar, e não estava disposta a perder a alegria pelo passado que parecia assombrado. As memórias só tinham o poder que ela lhe conferisse.
E a maior prova para ela era todos os dias tomar o pequeno-almoço numa pastelaria ao pé de sua casa e pedir uma torrada com um café duplo. Era a única pastelaria que ela conhecia que usava café de saco, e isso ainda a atraía mais. Tinha perfeita noção que não conseguia fugir ao café, ao seu sabor, àquele mistério que parecia tão ligado a ela. O café tirava-a, com a cabeça a rodopiar, do contentamento satisfeito da sua vida e trazia-lhe uma espécie de ansiedade feliz. Borbulhava de nervos e sentia-se emocionada pelas coisas mais estranhas: pela diversidade humana, pelas luzes da rua, pelo cheiro a frango assado. O café devolvia-lhe as borboletas no estômago das paixões de adolescência, do último dia de aulas antes das férias, do sentir as mãos do amor da sua vida no corpo.
Porém, naturalmente, a forma de vencer totalmente a batalha era no final conseguir evitar olhar para o fundo da chávena e ler o que o destino lhe apresentasse.
Lembrava-se de quando era muito novinha e confessara ao pai que tinha visto um homem numa paragem e tinha pensado nele a atar os cordões dos sapatos, a levantar-se da cama, a viver sozinho, e que sentiu aquela vida desconhecida na própria pele. O pai orgulhou-se dela e explicou-lhe o que era a empatia. Hoje em dia, perguntava-se se não teria simplesmente imaginado, como gostava de fazer enquanto tomava o pequeno-almoço, ou se não teria, na realidade, adivinhado. Se não teria invadido, sem querer, uma qualquer memória alheia, um qualquer passado, um qualquer futuro. Como uma amiga da avó, que conseguia ouvir os espíritos a falar entre si e que costumava bisbilhotar essas conversas. Talvez o tivesse visto nalguma chávena de café quando era criança.
Naquele dia, não resistiu. Olhou para o fundo da chávena de café e leu amor e desilusão. Leu traição e bonança. Olhou à sua volta. Quis afastar o sentimento de desilusão. Tinha aprendido quando era muito nova que não conseguia prever nada, que independentemente de quem bebesse o café a chávena mostrava-lhe uma qualquer imagem do futuro ou do passado de uma pessoa qualquer num mundo qualquer. Não havia como controlar o destino. Era um desperdício de dom. Nunca tinha conseguido perceber de quem era aquele pedaço de história que lia tão habilmente nas chávenas, e, por mais que o desejasse, entendia agora que nada tinha mudado.