Saiu do autocarro e já se sentia atrasado, mesmo sabendo ter ainda tempo para aquele compromisso que fizera. Que fizera consigo mesmo. Ele chegava ali porque assim o queria, porque queria algo que há muito tempo procurava e agora sentia poder ter.
Mas as coisas não lhe estavam a correr bem. Nada acontecia da forma que planeara. Via obstáculos, estava consciente deles, mas faziam-no sentir-se ansioso. Era o medo de falhar. Primeiro, a demora do autocarro a chegar. Logo depois, uma zaragata entre um revisor e um qualquer igual a tantos outros revoltados com o país e com a vida. Tempo perdido que apenas serviu para elevar o seu estado de ansiedade para níveis preocupantes.
Foi assim, já com uma expressão enfadonha no rosto e um sorriso meio perdido, que chegou à sua paragem de destino. E ao sair, logo no primeiro passo, colocou com um gesto pesado um pé numa poça de água negra. Era a água da chuva, conspurcada incessantemente pela rua até atingir a cor do carvão. Água ali encurralada, como ele se sentiu a olhar as calças sujas até à canela direita. Mas não se deteve, não se deixou desanimar por mais este infortúnio. Tinha um objectivo a cumprir e a dar-lhe forças.
“Pelo menos não chove.” Disse para si. Mas arrependeu-se. Segundos depois, abateu-se sobre ele uma forte chuva que o impulsionou sem pensar para o abrigo mais próximo. Apenas quatro degraus o separavam da protecção dada pela entrada de um prédio. Correu, escorregou no segundo degrau, desequilibrou-se e embateu com o joelho no último. Soltou um esgar de dor. Uma dor momentânea que desapareceu ao ver o joelho esquerdo em sangue, e um rasgão nas calças. Já começava a achar ser demasiado azar. Logo neste dia, neste compromisso. Pensou que seria um teste à sua resistência. Jurou-se não desistir.
Recomposto, seguiu para um café próximo, parcamente protegido da chuva pelas varandas. Entrou e pediu para usar a casa de banho, onde se limpou sem grande eficácia. Depois pediu um café, que seria uma pausa no dia, um instante de bem-estar, um bem-estar muito curto. Distraído a pensar nas provações que o tentavam afastar do seu objectivo, sentiu a chávena escorregar dos dedos, cair no balcão e espirrar o café quente. A sua camisa ficou então desenhada com umas indisfarçáveis manchas de café. Sentiu um leve ardor no peito e um pouco mais de frustração. Pagou e fugiu dali, muitos olhos pesavam-lhe.
Saiu do café a tentar rir, sem saber se havia de começar a gozar consigo próprio. Sentiu o telemóvel tocar. Pegou nele. Era ela. Atendeu no preciso momento em que o deixou cair. Agora já se ouviu a soltar impropérios silenciosos enquanto rangia os dentes e apanhava do chão molhado as diferentes partes do telemóvel. Felizmente já não chovia, mas escudou-se a sentir sorte por isso. Sentiu-a sim, depois de remontar o telemóvel e ver que ainda funcionava. Até elevou as mãos bem no alto, a celebrar uma pequena vitória. Só que esse momento foi aproveitado por alguém que o tirou da mão dele e logo fugiu em velocidade. A raiva e a fúria imergiram nele e deu-lhe estranha destreza para perseguir o larápio. E em pouco tempo, logrou alcança-lo. Agarrou-o pelo casaco e gritou alto: “Dá-me isso, filho da…”. O resto da sentença foi substituído pelo som de um murro a atingi-lo no sobrolho. Deteve-se em dor e pela segunda vez em muito pouco tempo, olhava o seu sangue.
Cambaleando, procurou um apoio e ouviu uma voz ao longe a chamá-lo. Era ela, e corria na sua direcção.
– O que te aconteceu, homem? – Perguntou ela. – Calças sujas e rasgadas, camisa manchada, a sangrar da testa e do joelho… E ainda sorris?
– Sim, a sorrir! Estou a sorrir, porque estás aqui e mesmo com tudo o que me aconteceu, eu não podia perder esta oportunidade. – Respondeu ele e depois beijou-a.