Tinha acabado de colocar a magia toda dentro do baú quando notou que lá fora havia uma sombra gigante. Aproximou-se da janela. Era a menina outra vez.
“Já viste isto, Wolf?” comentou com o seu velho e meio cego labrador preto. O cão soltou um ladrar sábio.
Há uns dias que aquela garota se sentava no passeio, o cabelo de carapinha penteado em tranças, a expressão a pedir-lhe o que ele não queria compreender. Por vezes, ele aproximava-se da janela e o olhar fugia para aqueles olhos castanhos gigantes cheios de sorrisos e perguntas. Ela acenava-lhe devagar, como quem cumprimenta uma visão. Ele fugia a esconder-se atrás dos cortinados. Sentia a curiosidade dela pousada nele e era-lhe desconfortável. A garotinha ali ficava, fiel até as luzes amarelas das ruas se acenderem e ela decidir ir embora quando a lua chegava.
A garota desaparecia, só que a pergunta ficava ali a viver com ele, a pesar-lhe nas pernas, a fazer companhia no silêncio: quem era aquela criatura que o tinha descoberto numa qualquer noite, sem querer, a arrastar os seus pecados pelas ruas abandonadas?
Notou que a sombra gigante se afastava, esperou uns minutos e saiu com o Wolf para darem O Passeio. Todos os dias, até quando chovia, O Passeio não faltava. Gostavam de aproveitar a quietude da noite para se verem melhor, para conversar sobre filosofias e mundanidades e memórias. À luz da noite, as palavras pareciam mais certas. Riam-se muito juntos. Andavam devagarinho, pequenos passinhos curtos em que arrastavam os pés. O Wolf estava quase cego e já não tinha o olfacto a cem por cento – os dois tinham mais idade do que aquela que conseguiam contar e a velhice tinha o hábito de se agarrar aos joelhos.
Depois de duas horas, entraram para a escuridão do prédio e subiram ao primeiro andar sem precisar de luz. Eram mais de sessenta anos a viver naquele lugar. As mãos nem tremiam quando a chave entrou e rodou e fez o familiar ruído. O Wolf entrou primeiro e ele seguiu-o. Empurrou a porta para fechar, mas não ouviu o som do trinco. Quando acendeu a luz para ver porque é que não fechava, os olhos gigantes da menina sorriram para ele.
“Mas… mas… como…”
“Eu sei que tu guardas magia aqui” o dedinho indicador esquerdo fugia do pequeno punho fechado e apontava para ele de forma acusadora.
Fitaram-se, ela de sorriso satisfeito e ele piscando muito os olhos na incompreensão. Mas… ela tinha-os seguido? E como sabia da magia? Como… quem…? Reparou que o Wolf se tinha aproximado da menina e cheirava-lhe as pernas de muito perto. Abriu a boca e pôs a língua de fora em aprovação, e ela abraçou-o pelo pescoço, como se fossem grandes amigos.
O velho traidor, pensou.
A menina olhou à volta: as paredes cobertas por livros, a gaiola de porta aberta com dois periquitos que dormiam, o cadeirão verde de veludo coçado com a manta xadrez, outro cadeirão mais pequeno e castanho coberto de pêlos pretos, o candeeiro mesmo por cima do cadeirão verde, duas canecas no chão ainda com sacos de chá e, ao lado, o baú gigante.
“Mostras-me a magia?”
Ele sentia-se paralisado. Não se mexia. Ela foi até ao baú e voltou a olhar para ele, brilhando de súplica e curiosidade. Ele anuiu quase sem perceber. E ela abriu o baú.
Explosão de papelinhos coloridos e pós dourados.
Toda a sala ficou inundada de um brilho tão amarelo que parecia um Sol.
De dentro do baú soltou-se um arco-íris parecido a uma mola e atrás correram fadas com chapéus de bruxa e libelinhas com penas. A menina meteu-se em bicos dos pés e espreitou para dentro. Um olho que parecia o Universo espreitava de volta. O outro olho estava tapado por uma pala. Havia borboletas da cor de estrelas, azuis e brancas e roxas. Viu passar um cavalinho feito de água que corria com unicórnios, pássaros de vento, duendes gigantes que carregavam relógios, folhas de árvores coloridas que dançavam em tornados. Ouvia uma música suave e via bailarinas prateadas que rodopiavam. Era capaz de ver todas as cores do cosmos.
“Isto é lindo!” disse a garotinha, emocionada.
Ele olhou para o Wolf e sorriram os dois. Depois, foi até ao baú e fechou a tampa cuidadosamente. Silêncio. Tudo desapareceu e o mundo voltou a ser apenas uma sala pequena que transbordava de livros. Depois da magia do baú, parecia que tinham caído num buraco mal iluminado. Ele deu a mão à menina e guiou-a até ao cadeirão verde, arrastando os sapatos no chão de madeira crii crii crii, a energia da menina a borbulhar-lhe entre os dedos. Sentou-se e olhou para ela, à sua frente.
“Quem te falou da minha magia?” perguntou-lhe.
“A minha avó. Ela lê as linhas das mãos e as rugas da cara. E ela conhece-te há muitos anos.”
O à-vontade inocente da criança desconcertava-o. Olhou bem para ela. Olhou para o Wolf, deitado a observá-los. Ela sorriu-lhe o seu maior sorriso, um dente da frente a abanar. Ele sentiu o coração esfarrapado; já tinha vivido aquilo, pensou com desalento. Observou o baú de soslaio: ser guardião daquela magia tinha-lhe dado a eternidade, mas tinha-lhe custado tudo: a família, a juventude, a saúde, a felicidade.
“Olha o que eu sei fazer, como na tua magia” disse a garota.
Abriu os braços, colocou-os em cima da cabeça e girou como uma bailarina, abanando o cabelinho entrançado ao ritmo de um som mudo. O cheiro doce da infância.
E ele soube.
“Tu é que me conheces há muitos anos” disse, emocionado, e abraçou-a.
“Pensei que não te lembrarias de mim!” ela apertou-o com toda a força dos seus pequenos bracinhos. “A cada encarnação é mais difícil encontrar-te, pai.”