Quando a mãe morreu, ela não chorou.
Beijou-lhe a testa durante um longo infinito. Despiu-lhe o pijama e lavou com cuidado a pele baça pela doença, passou a esponja com água e sabão pelas rugas dos anos, pelas varizes do esforço, pelos músculos mirrados pelo tempo. Cantou uma música triste, de embalar, e a sua voz de repente era a voz da mãe. Com a gema dos dedos, tocou as estrias das gravidezes – eram o seu nome, o nome dos irmãos, cordas imperfeitas que guardavam sinfonias. Acariciou-lhe a cara várias vezes, como se quisesse guardar as feições da mãe nas suas mãos, na sua memória muscular, nas suas impressões digitais. Fechou-lhe os olhos apagados.
Depois, tocou na pequena abertura que a mãe tinha no peito.
Suavemente, empurrou a pele para dentro e deixou que cofre que a mãe tinha ao pé do coração se abrisse de par em par. Nunca se atrevera a perguntar o que guardava ali, tão dentro de si, tão no centro de quem era. Talvez tivesse medo da resposta. Talvez soubesse que nunca se deve conhecer tão totalmente alguém.
De dentro do peito, tirou uma palavra. Olhou-a com espanto durante muitos minutos. Não sabia o que fazer com ela. Pensou em voltar a colocá-la no espaço negro que agora tomava conta do peito escuro da mãe. Mas não podia. Não fazia sentido. Não podia cremar também aquela palavra, era impensável, era impossível. Guardou-a no bolso das calças.
Vestiu a mãe, despediu-se dos enfermeiros e foi para casa. Não tomou atenção ao caminho. Sentia a palavra em todos os seus nervos, sabia-a nos seus passos, a navegar por entre os dedos dos pés como uma pedra no sapato e no pensamento. Ao chegar a casa, despiu-se e tomou banho. Sentiu o cheiro da morte no próprio corpo. Algo nela apodrecia e nunca seria substituído. Esfregou o corpo com mais força para limpar a ausência.
Antes de se deitar, tirou a palavra do bolso e embalou-a até adormecer. Soube que a mãe tinha feito o mesmo, que a avó tinha feito o mesmo, que a bisavó tinha feito o mesmo. Herdamos palavras como herdamos feições, como herdamos amor. Naquela noite, ela sonhou que era todas essas mulheres. Naquela noite, ela foi todas essas mulheres.
Quando acordou, tirou o pijama em frente ao espelho. Abriu o cofre que tinha no peito e colocou lá a palavra. Com cuidado, acomodando-a no centro nevrálgico de quem ela era agora. Pensou que o coração lhe batia no compasso certo. E só depois, ainda vendo-se refletida nos próprios olhos, conseguiu chorar.