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Tsukuro Tazaki: O homem sem cor

Não é possível, nem desejável, começar a falar de um livro de Haruki Murakami sem o apresentar primeiro. Ele é um dos mais conhecidos autores japoneses da actualidade e, também, um dos mais aclamados escritores em todo o mundo. Já foi referenciado inúmeras vezes para o Prémio Nobel da Literatura, sem nunca o ter conseguido vencer. Talvez já merecesse, mas vamos começar pelo início. Murakami nasceu em Kyoto, em 1949, e cresceu na cidade de Kobe, uma cidade portuária que lhe deu a visão cosmopolita da vida que acaba por ser um dos sustentáculos da sua obra. É formado em Dramaturgia Clássica pela Universidade de Waseda. O curioso é que Murakami acabou por abrir um bar de Jazz nos arredores de Tóquio, experiência que, segundo o autor, lhe ensinou tudo o que precisa de saber na vida. Desde o livro de 1987, Norwegian Wodd, que prémios literários são elementos que não faltam no currículo de Haruki Murakami, um escritor com uma subtileza de palavras incrível, com uma carga sombria sublime, com narrativas que nos fazem sonhar, perder e encontrar, tudo ao mesmo tempo só com o simples gesto de virar uma página.

A Peregrinação do Rapaz sem Cor é a mais recente prova de tudo o que foi supracitado. Li o livro em inglês, mas existe edição em língua portuguesa, o que não vos deixar qualquer desculpa para não aproveitarem mais uma obra-prima do escritor japonês.

O rapaz sem cor é Tsukuro Tazaki. Sem cor, porque, ao contrário dos seus quatro grandes amigos de secundária, Tsukuro não tem, no nome, qualquer referência a uma cor. Todos os outros a têm, menos ele. Esse facto de aparente curiosidade, leva a que Tsukuru não veja em si grandes qualidades, não veja em si uma cor de personalidade vincada. Conscientemente, ou não, sempre se contemplou à margem do grupo por essa dimensão: era o único que não detinha no nome o significado de uma cor. Tão simples quanto isso. Porém, até ao dia em que, sem ninguém o prever, os seus quatro inseparáveis amigos o informaram que não o podiam ver mais, ou sequer falar mais com ele, Tsukuro Tazaki era fundamental para o equilíbrio daquele grupo de amigos. Se o era, porquê a separação? Sem aviso, sem explicação, apenas com mágoa, com perplexidade, com o início de uma grande solidão para Tsukuro.

Tal acontecimento quase o deixou à beira da morte. Sem vontade de viver, não foi fácil sair do ciclo vicioso da solidão, da vida sem cor, sem grandes objectivos, ou sem vestígio daquilo a que podemos chamar de rumo. Já em Tóquio, a estudar para se tornar engenheiro de estações de comboio – o seu fascínio desde que conhecemos a personagem – Tsukuro consegue dar a volta por cima, muito por culpa do seu inconsciente e das entranhas dos seus pensamentos mais profundos. Aqueles que nós, na vida real, também temos, quase todos os dias. Aqueles que reprimimos por serem desadequados socialmente, na sociedade individualista que construímos sem grande consciência. É essa dimensão que acarreta A Peregrinação do Rapaz sem Cor para a genialidade de um livro com uma história simples, sem picos de fantasia – como é habitual no autor –, mas com um poder introspectivo que nos coloca em sentido, que nos coloca pontos de interrogação em todos os capítulos.

Nesse instante, Tsukuru soube. No mais profundo do seu ser, compreendeu por fim. O que une o coração das pessoas não é apenas a harmonia. Os corações humanos unem-se através dos desgostos sofridos. Ferida com ferida. Dor com dor. Fragilidade com fragilidade. Não existe silêncio sem um grito de dor, não existe perdão sem derramamento de sangue, não existe aceitação sem a passagem pelo inevitável sentimento de perda. É aqui que se encontram as raízes da verdadeira harmonia.

Tsukuro acaba por conhecer Sara. Uma mulher interessante e inteligente com quem se envolve esporadicamente. É através dela que, quase duas décadas depois, é motivado a descobrir o motivo da separação repentina dos seus amigos. Esse processo de descoberta e investigação por uma parte da sua vida que continuava a mexer com ele levou-o de volta à sua terra natal, no Japão, e também à Finlândia. É verdade, o destino quis que assim fosse, com a composição Os Anos de Peregrinação de Liszt nos ouvidos, Tskuro embarca nessa viagem de confrontações com terceiros, de assimilações introspectivas, de conhecimento em busca do seu lugar no mundo. Enquanto tudo isto acontece, as emoções são empilhadas, as peças do puzzle começam a encaixar e, nós, leitores, começamos a pensar na nossa própria existência. Parabéns Murakami, o teu propósito é facilmente conseguido. Para além da riqueza emocional desta narrativa, os convites à reflexão sobre a forma como vivemos e em como nos relacionamos com os outros são acutilantes. Nunca estivemos tão longe uns dos outros, tão sós dentro de nós mesmos.

Vivemos numa época dominada pela apatia generalizada e, ao mesmo tempo, estamos rodeados de uma quantidade absurda de informação sobre os outros. Basta alguém querer para conseguir o que se propõe. No entanto, pouco ou nada sabemos, efectivamente, acerca das pessoas.

Assim, aos poucos, sentimos um turbilhão de emoções enquanto lemos a obra. Mesmo depois de fechar o livro para uma inevitável pausa, continuamos a pensar nele, a tentar organizar as ideias cronologicamente, a tentar que tudo fique arrumado, na narrativa e nas emoções que ela nos impinge. A Peregrinação do Rapaz sem Cor não é o melhor livro que já li de Haruki Murakami, mas é, sem dúvida, genial. É um romance intimista sobre o amor, a amizade e a solidão. Da solidão da personagem e de todos aqueles que ainda não encontraram o seu lugar no mundo, onde se sentem em casa.

Em súmula, não esperem que este livro vos transporte para universos paralelos, para mundos irreais com duas luas, como em IQ84. Esperem muitas emoções difíceis de definir e de digerir. Daquelas com que nos podemos identificar mais facilmente, porque são reais, ou podem ser. A realidade não é um campo tão bem definível como por vezes poderá parecer. Uma coisa é certa, Tsukuro tem cor. Nós todos temos uma cor que nos define. Às vezes, só visível para os outros, mas ela está lá e nós só temos de encontrar a paz interior para que se possa propagar para o universo continuar como suposto, sem que exista um suposto pré-definido.

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