São Pedro de Moel

Não é habitual escrever na rubrica Viagens sobre um lugar onde, mensalmente, recrio o sonho da infância, mas é exactamente isso que acontece de cada vez que entro em São Pedro de Moel vindo da estrada da Marinha.

Aquele tempo. Cada um de nós tem um tempo na sua vida, aquele tempo segmentado do qual se eleva uma forma particular de felicidade, mais real ou idealizada (nunca o sabemos bem, sobretudo tratando-se da infância), e esse meu tempo aconteceu até 1986 na Marinha Grande (e nas férias que por lá passei nos anos que se seguiram) e em São Pedro de Moel.

São Pedro é bonito, mesmo que não fizesse parte do meu passado. Tem uma beleza tão particular que é difícil votar-lhe indiferença. Escondido à beira-mar pelo pinhal, nele convivem as varandas típicas em madeira e o modernismo das décadas de cinquenta e sessenta, o empedrado romano remetendo para outro tempo e uma textura no ar que filtra aquela terra à beira-mar plantada de uma magia na qual nunca deixei de acreditar.

Escrever sobre São Pedro é viajar até à infância, voltar à praia com a minha avó e comprar pinhões ou merendeiras no regresso à casa decrépita que ela alugava numa rua por trás da praceta (o banho no alguidar), ou à piscina de água salgada, há anos uma triste ruína, mas que juro em tempos ter sido um lugar pujante de alegria.

São Pedro traz a força do farol erguido em frente ao mar, pináculo cravado numa terra diferente de tudo o mais, o Penedo da Saudade e a Praia Velha, o Old Beach, que ardeu e se reergueu. Aquele tempo e este tempo em que regresso misturam-se numa contínua recriação de um lugar em constante mudança dentro de mim. Não é assim em todo o lado, visto São Pedro possuir essa ambivalência de memória de outrora e visita actual – talvez assim não fosse se lá vivesse. Já escrevi antes: ter saído da Marinha Grande aos cinco anos avivou as memórias do que se passou até agosto desse ano.

A mata, extensão natural desta vila, entra por ela adentro – ou terá sido o povoado que se insinuou no meio das árvores? – e são precisamente As Árvores e a Ponte Nova, caminhos alternativos para São Pedro, lugares idílicos, camuflados pela mancha verde que vemos na fotografia aérea (hoje já não tão verde depois do incêndio de 2017), que foram poupados ao fogo.

São Pedro será sempre o Bambi com o comboio de lata por trás, pejado de pinhas e caruma, ferrugem e teias de aranha. O Bambi, à entrada da vila, terá sido muitas coisas, de casa de chá a discoteca, de simples café de veraneio a bar. O que me lembro é de brincar no comboio enquanto os meus pais tomavam café. E da locomotiva por trás. Fazia parte da composição, transportava pessoas e os produtos da mata, mas na minha vida, sempre foi objecto de culto, o imaginário de outro tempo para onde me era permitido viajar e brincar na vida real.

Nunca reconheci em São Pedro o lugar elitista de que a minha tia fala — a casa da família X, do Dr. Y, etc. — pois ele nunca existiu para mim. Tal como só reconheço de nome as voltas dos cinco ou dos sete, visto nunca ter percorrido (vergonha!) qualquer um dos caminhos para agora discorrer sobre eles. Mas também essa elite e os passeios populares fazem parte do São Pedro que eu conheço, não através do que lá vivi ou vivo, mas das histórias que vão enriquecendo a fotografia que trago desta vila.

Com o divórcio dos meus pais e o regresso da minha mãe à Marinha, as visitas tornaram-se mais regulares e pude voltar a estreitar a relação com a família e com a terra: restam hoje mãe e tia, a Vânia e a Maria Olinda, o Sr. Manuel e pouca mais gente desse tempo. Mas a terra e as imagens que dela guardamos têm uma força que se sobrepõe às gentes, por mais importantes que estas sejam.

Sabia ser difícil evocar São Pedro sem cair nesta toada nostálgica, mas é assim que ele se me insinua na memória e é também assim onde, de vez em quando, caio ao voltar a algum lugar feliz. E São Pedro é um lugar feliz. Foi lá que passei a primeira passagem de ano em liberdade do tempo COVID: em 21/22 no Hotel Mar e Sol, com a Sofia, o Vítor e a Patrícia, arriscámos com sucesso. É também de memórias recentes que os lugares se vão reconfigurando na nossa vida.

São Pedro de Moel é tudo isto e tanto mais. Com a casa do poeta Afonso Lopes Vieira (hoje casa-museu) plantada junto ao mar, deixo uma das suas quadras…

Onde a terra se acaba e o mar começa

é Portugal;

simples pretexto para o litoral,

verde nau qu’ao mar largo se arremessa.

… e que tão bem resume São Pedro: simples pretexto para o litoral.

[Este texto não está escrito segundo o novo acordo ortográfico]

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