Começa o dia.
Chamo um carro para me levar ao trabalho ouvindo o motorista contar uma história que começa por “no outro dia apanhei um cliente preto”. Aguardo ansiosamente que tal detalhe sobre o passageiro seja relevante para a narrativa. Nunca é.
Na hora de almoço, passo por uma mãe que diz para a filha, limpando-lhe a cara “limpa-me essa cara filha, estás toda sujinha, pareces uma ciganinha”. Como se tomar banho dependesse da etnia.
Partilho o que vi nas redes sociais e sou invadido por centenas de comentários e mensagens com a doce mensagem tradicional de “volta para tua terra”. Nunca sei bem qual é esse lugar. Se for para o Brasil dizem que sou “tuga”, em Portugal dizem que sou “zuka”. Eu fico a pensar se a minha terra não será algures no meio do oceano. Se eu quiser voltar para a minha terra tenho de dizer ao piloto “olhe, vou sair aqui” e salto do avião a gritar “lar doce lar”.
À hora do lanche leio no jornal que a polícia proibiu o uso de tatuagens com suásticas por parte dos agentes. Ainda bem, não vá o público pensar coisas sobre eles.
Ao fim do dia de trabalho, chego a casa e sou cumprimentado pela vizinha da frente, ficando um bocado em amena cavaqueira. Entre risos de parte a parte ouço-a exclamar “ainda bem que você e a sua mulher vieram para aqui, não queria que a casa fosse alugada por brasileiros”, mal sabendo ela que apesar do meu sotaque, nasci para lá do Atlântico.
Está tudo bem, afinal de contas, já em casa ouço na TV que “Portugal não é um país racista” pela boca do deputado André Claro Ventura. Sabendo que, no fundo, caso o seu nome fosse André Escuro por ventura perderia metade do eleitorado.
Nisto mais um dia se passou como tantos outros, e Portugal continua sem ser um país racista, da mesma forma que uma casa infestada por baratas continua sem pertencer às baratas. Apesar disto, o jantar continua com patinhas crocantes.
Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico