Na vida empresarial, sobretudo quando há negócios internacionais, é habitual o posicionamento de Pensar Global / Agir Local. Este conceito resume-se na aplicação comum de princípios e valores, mas com actuações distintas, respeitando as particularidades e características de cada país ou região, indo ao encontro do consumidor e também usufruindo dos seus recursos diferenciados. Um pouco como se comprássemos uma peça de roupa numa cadeia de lojas, mas depois temos um costureira que faz pequenos ajustes às nossas medidas, para que a peça caia na perfeição.
E em tempos de globalidade, em que os negócios, as viagens e as amizades se estendem pelo mundo, podemos estar a usar os binóculos para longe e mais além, mas ao mesmo tempo, esquecermos um pouco do nosso quintal e do que vimos à vista desarmada, desconhecendo o que nos acontece à porta de casa. Num destes dias, recebi uma mensagem duma amiga a procurar angariar ajudas para uma senhora com 3 filhos, com dificuldades elementares. Pedia basicamente bens alimentares, roupa, enfim, aquilo que a maioria de nós tem por garantido. Em algumas horas, reuniram-se alguns bens e valores e tudo isso será entregue numa casa em Vila Franca de Xira onde moram 5 pessoas em carências graves. Perto de mim. Desconhecia.
A aldeia global e as redes sociais têm permitido alguma divulgação de casos críticos. Tem vindo a circular um pedido de um casal, morador na Azambuja, que se encontra também em grave situação financeira. Tendo falido em 2008 e sem conseguirem arranjar emprego, foram vendendo o património existente à data, tendo acabado por emigrar para a Inglaterra, onde trabalharam em diversas actividades, como sendo limpezas e fábricas. Em consequência do esforço físico, o senhor sofreu um AVC e foi operado 2 vezes ao coração, e a esposa foi também operada à coluna. Neste momento têm 61 e 59 anos. Em março deste ano, imediatamente antes do início da pandemia, voltaram a Portugal, dado que tinham empregos garantidos, que no entanto não se vieram a concretizar pelo congelamento económico. Este casal esteve na baixa de Lisboa vendendo estantes para tentar obter algum rendimento, mas a Polícia Municipal não permitiu o uso da via pública. Ambos inscritos em centros de emprego e em fábricas, não têm obtido qualquer resposta por parte destes, e as ofertas que lhe têm sido feitas são baseadas em comissões, sem que lhes seja garantido um salário mínimo ou qualquer outra forma de subsistência firme e imediata que os impeça de ir morar para a rua.. Estão em risco de perder a casa. Pedem um trabalho. No passado mês de agosto o Ministério do Trabalho e da Segurança Social contactou-os, buscando informações, para avaliação da possível integração em um qualquer subsídio. Até hoje não tiveram qualquer desenvolvimento. Permanecem na Baixa de Lisboa, com cartazes a explicitar a situação, onde vão recebendo algumas ofertas em dinheiro e géneros, mas com a necessidade imperiosa de ter um emprego. É isso que pedem.
E quantos mais casos como estes existirão mesmo ao nosso lado? Alguns ocultos, que a vergonha da pobreza e o constrangimento de pedir travam a exposição pública, mas também alguns que se nos oferecem aos olhos e muitas vezes não vemos na distração do próprio umbigo. Outras vezes vemos e evitamos, como cão com sarna a que não sabemos dar solução e que nos causa repúdio porque vem desconstruir a ideia de um mundo que queremos justo. Poderá ainda dar-se o caso de querermos agir, mas sem sabermos como, para não ferir suscetibilidades do necessitado que poderá ofender-se com a abordagem baseada em roupas remendadas e frequentemente repetidas, ou magreza deficitária. Dói aos olhos, ao coração e ao espírito.
É inevitável pensar que há-de haver alguém próximo dessas pessoas que podia ter-se apercebido, feito algo e nada fez. Como quando alguém se suicida ou tem problemas na vida graves, e pensamos sempre onde estão os familiares, os amigos, os vizinhos. E se formos nós próprios esses familiares, amigos e vizinhos que nada fizemos? Que passámos incólumes pelos dias, no nojo do alheamento?
Querendo e tendo capacidade, podemos ajudar de várias formas. Muitas vezes não temos, por diversas razões, conhecimento das situações ao nosso redor e optamos por ajudar as causas amplamente divulgadas, nomeadamente por ONG e associações que estão muito mais inteiradas dos temas. E ajudar é ajudar e é meritório, mas fará sentido ajudar os desconhecidos, os que nos chegam através de campanhas de marketing, fruto de comunicações empresariais, quando ignoramos o mundo à nossa distância de segurança? Quando desconsideramos os nossos adjacentes?
Não menosprezando as grandes campanhas, que considero dignas e necessárias, não posso deixar de referir que a dimensão das mesmas traz alguma divagação nas responsabilidades e sobretudo na avaliação cabal dos objectivos efectivamente alcançados. Mais do que isso, têm vindo a publico algumas irregularidades por parte de alguns responsáveis que podem pôr em causa a credibilidade de algumas acções / associações. Assim sendo, parece-me que podemos de forma mais factual e legítima garantir um conhecimento da situação, por nossa iniciativa ou através de pessoas em quem confiemos, acompanhando a evolução da mesma.
Assim, talvez devamos deixar os binóculos para as viagens, e no dia a dia chegar aonde chega a nossa mão: à mão do outro.
“Se a miséria dos pobres não é causada pelas leis da natureza, mas pelas instituições, é grande o nosso pecado.”
Charles Darwin