Os Anos

Recebi do António – meu homónimo, colega e, sobretudo, amigo – Os Anos pelo aniversário, com um misto de curiosidade e desconfiança. Os Nobéis da Literatura, como, aliás, inúmeros prémios artísticos nas últimas décadas, têm sido tomados de assalto por uma politização que, não poucas vezes, dá primazia à ideologia em detrimento da qualidade. Há casos gritantes deste fenómeno, que nos anos recentes ganhou contornos a roçar a falta de vergonha.

Não quer isto dizer que uma obra de arte, seja um livro, uma instalação, um bailado ou o que for, tenha obrigatoriamente que ser apolítica (por vezes é difícil sê-lo); simplesmente quando a política engole todo o impacto e nada reste em termos do trabalho por trás da mensagem, esta fica coxa. Em arte, a forma vale tanto quanto o conteúdo.

Assim, a curiosidade e a desconfiança lançaram-ma para Os Anos. Sabia de Annie Ernaux somente que havia utilizado um episódio traumático da sua vida – um aborto – para escrever um livro (O Acontecimento). Nada mais. E numa altura em que as (auto)biografias e os livros de memórias proliferam (a moda do momento), fiquei de pé atrás.

Tive sorte… Os Anos é uma autobiografia, ao mesmo tempo intimista e universal, atravessando mais de seis décadas da vida da França e de uma mulher.

Annie Ernaux escreve primorosamente, com acuidade, sentido de observação e análise, enquanto justapõe a sua realidade, que ela vê e sente, sobre essa outra, política, histórica, que a ultrapassa e da qual ela tenta fazer parte, na primeira metade da vida, para mais tarde correr atrás.

A autora não esconde ser uma mulher de Esquerda, revolucionária inacabada, com a crença, mas a quem falta o ímpeto, e reconhece-o, tal como o avançar do mundo, moderado, é sempre insuficiente para a sua ânsia de mudança.

A condição da mulher ao longo da segunda metade do século XX é outro vector que atravessa todo o livro, e aí, Ernaux talvez tenha estado mais na linha da frente em prol da mudança. Não necessariamente com um activismo acérrimo, mas pelo exemplo de vida e consciência de progresso que deveria acontecer e para a qual contribuiu.

Por fim, o amor. Vago, algo desencantado, como se também aqui Annie Ernaux perseguisse a história. Talvez seja só o tom melancólico da escrita ou uma opção literária de não revelar grande entusiasmo amoroso, ou até um feitio mais contido. Mas, na verdade, fiquei com a ideia de que, pese a vivência variada, não guardou grande felicidade no amor conjugal.

Este livro encantou-me. Por tudo o que escrevi, por uma honestidade assombrosa e pela capacidade de a manifestar com enorme elegância, levantando o véu da intimidade, expô-la, e ainda assim conseguir encontrar o ângulo perfeito, a luz exacta e compor o cenário ideal para que, tendo todos tido a oportunidade de a ver (e ler), ela – a exposição da intimidade – não fira a vista, mas incomode o leitor, numa beleza poética que é muito mais do que a forma das palavras, muito mais do que a exposição de um ideal: é a simbiose entre o conteúdo acutilante e nostálgico que compõe (na sua visão) a vida desta mulher e do seu país, e a construção equilibrada do tom, a escolha das palavras, um todo, bem estruturado ao serviço da mensagem.

Um livro obrigatório, que eu não escolheria, mas que me despertou a curiosidade (agora já sem desconfianças), para explorar mais a fundo a obra desta autora.

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