O segredo de Matilde

Lembrou-se do sabor do leite de creme da avó, embora não o comesse há uns sete ou oito anos. Há muito tempo que não pensava naquele sabor doce e aconchegante. Mas Matilde tentava não se demorar nestas lembranças, que eram boas mas acabavam sempre com a inevitável morte da avó e os maus tratos do avô. Preferia ignorar o bom e, assim, também o mau.

Até ao dia em que aprendeu a voar.

Ela tinha 12 anos, e a avó tinha morrido há dois. No dia anterior, o avô tinha-lhe batido com o cinto sem ela perceber porquê. Já devia ter aprendido que não era obrigatório haver uma razão, mas ainda se questionava e procurava onde teria ela errado. O avô tinha chegado bêbedo a casa, tinha insistido que ela tirasse a roupa, e quando ela começou a chorar e se negou, bateu-lhe com o cinto até se cansar. Nunca se sentira tão desprotegida como naquele dia.

Por isso, na manhã seguinte, antes mesmo de ele acordar, Matilde calçou umas galochas brancas, pôs um casaco azul quente, pegou no guarda-chuva branco que a avó lhe tinha deixado, e destrancou-se do quarto. Precisava de sentir o vento nos cabelos como chicotes, a pele fria e dura como uma estátua. Gostava de vento. Mais tarde descobriria que adorava a sensação de liberdade e de loucura perante a imensidão da natureza, mas naquele dia só queria fugir. O guarda-chuva era enorme para o tamanho dela, mas ela tinha saído com a avó, as duas debaixo dele, tantas vezes que a sentia ao lado dela, como se estivesse viva. Sentia-se protegida.

Abriu a porta da rua.

Abriu o guarda-chuva e atirou-se ao vento.

O segredo de Matilde_destaqueRodopiou com o guarda-chuva como uma bailarina, pondo-se em pontas dos pés nas galochas e rodando sobre si mesma. Puxou com força o guarda-chuva para ela, com medo de o perder, mas o vento, como se estivessem numa dança feroz um com o outro, puxou-os de novo para onde quis. Dançavam para a direita. E para a esquerda. Ela corria atrás dele, num baile desajeitado. Corria de um lado para o outro, rodopiava, tentava lutar. E foi nesse momento que aconteceu.

Nesse momento, com a força do chapéu de chuva, o vento obrigou-a a levantar os pés do chão. Agarrou-se com força ao cabo. Olhou para baixo, e por segundos teve medo. Mas percebeu rapidamente o que estava a acontecer, e sentiu-se mágica, sem medos. Mal acreditava. Sorriu, riu às gargalhadas. Percebeu, claro que percebeu! Estava a voar! Era magia!

Conseguia ver que se afastava cada vez mais do chão, olhando para baixo emocionada mas com medo. Não sabia para onde ia, mas nem se lembrou ou preocupou. Era muito nova, mas já sabia que a natureza tinha a sua própria sabedoria, e que não adiantava ela escolher nada. O vento mandava. Via a praia debaixo dos pés, debaixo das pequenas galochas que tinha calçado, e depois prédios pequeninos como os desenhos que ela fazia. E também árvores tão pequenas como os brócolos que a avó colhia, ou sinais que pareciam pirulitos. Não tardou em ver a sua cidade como um retalho, e cruzar as nuvens. Cheirou-as. Cheiravam ao banho, a água quente e a humidade. Tocou-as, e viu-as a desaparecer por entre os dedos. E subiu, continuou a subir. Voltou a agarrar-se com força ao cabo, até chegar às estrelas, até se desviar de uma estrela cadente e de conseguir ver a Terra debaixo dos pés, pequena, como um trampolim.

Depois, como se o chapéu soubesse que era hora de voltar, desceu devagar, e ela entrou no quarto a rir de alegria.

Experimentou vezes sem conta aquele seu grande segredo, e nunca contou a ninguém. Desde que aprendera a voar que a vida lhe parecia mais tolerável, e que o avô nunca mais tinha conseguido pôr-lhe a mão em cima. Ela voava, desaparecia, mal o via sequer, e se ele algum dia a descobrisse, certamente pensaria que estava louco e esqueceria. Ela era uma menina, uma pequena menina, mas era livre. Estava livre, e podia fazer o que quisesse com aquele chapéu.

E o dia em que se voltou a lembrar do leite de creme da avó, em que recordou com nostalgia o seu primeiro vôo, foi o dia em que soube que seria ainda mais livre. Tentava absorver tudo o que significava fazer 18 anos, e não conseguia evitar sentir-se feliz. Fazer 18 anos significava que nada a impedia de pegar na sua roupa e de ir embora. De ir finalmente embora, sem que a polícia a obrigasse a voltar para o avô. Numa pequena mochila juntou as suas poucas coisas, e à meia-noite, assim que o relógio da aldeia anunciou o seu dia de anos, pegou no guarda-chuva e atirou-se ao vento.

Foi para a direita, e viu a praia, como no primeiro dia que descobriu que sabia voar. Deliciou-se ao ver alguns prédios familiares a surgirem, para de seguida se afastarem. Subia, ia mais para o alto, e via os telhados, as antenas, os gatos e os ratos a tentarem fugir. Via buracos e piscinas vazias, ou grelhadores deitados, derrubados e vencidos pelo tempo e pelo esquecimento. Ocasionalmente, um gato olhava curioso, sentado a uma janela que alguém se esquecera de fechar, ou um cão ladrava ao senti-la.

Riu-se alto, porque nada importava. Não conseguia ver para onde ia, mas também nunca tinha conseguido antes, o vento sempre fazia o que queria. Nada importava; ela deixava-se levar pelo vento, para onde ele a quisesse deixar, ver o que ele lhe queria mostrar.

Voou durante alguns dias, parando nalguns sítios só para descansar, dormir debaixo de árvores e comer frutos. Visitou sítios que não conhecia, ouviu línguas que não conhecia. Explorou o mundo, procurou o seu lugar. Mas só quando voltou a sentir aquele cheiro a leite de creme, doce e aconchegante, numa cidade onde nunca tinha estado, ouvindo pessoas a falar uma língua que não era a sua, é que soube que tinha encontrado o seu destino.

E, por mais que tentasse, a partir daquele dia nunca mais conseguiu voar.

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