O Jogo do Mundo (ou a afirmação da loucura)

Assim que se entreplumavam, algo como um ulicórdio encristorava-os, extrajustava-os e paramovia-os, de repente surgia o clinão, a esterfurosa convulcante das mátricas, a jadescorrente nabocaplúvia do orgúmio, os espróemios do merpasmo numa suprahumítica agopausa.

(parte da descrição de uma cena de sexo entre Maga e Horácio Oliveira – capítulo 68 – escrita em glíglico, linguagem que Cortázar inventou)

Terá sido um “longo impulso” motivado pela loucura ou um assombroso relance de clarividência que levou Julio Cortázar a construir uma das mais curiosas, profundas, arrojadas e disruptivas obras literárias do século XX (e provavelmente de todos os tempos)?

Não sei, mas sei que é tão difícil escrever tal qual pensamos, com a des(estrutura) caótica com que o que nos vem à mente se interpõe entre os instintos e o modo como nos apresentamos e relacionamos com o mundo, como é fácil agrilhoarmo-nos a uma normalidade obsessiva com a qual tantas vezes nos mostramos em sociedade. Por que insistimos, sobretudo na Arte, em seguir estruturas estandardizadas quando a liberdade artística tantas vezes pede, se alimenta e enriquece com o contrário?

Foi a medo que entrei na loucura que constituiu a leitura d’O Jogo do Mundo. E que loucura maravilhosa! Algo tão diferente não deve ser aconselhado (não fui bem sucedido sempre que tentei aconselhar este livro): passar o testemunho, sim, e deixar que uma semente de curiosidade, depois de plantada, consiga encontrar condições apropriadas para germinar na vontade de algum espírito interessado.

Formado por noventa e nove capítulos “prescindíveis” (de outros lados – pensamentos, citações…) e cinquenta e seis que, por contraponto, pressupomos serem “obrigatórios”, a originalidade desta obra não se esgota na estrutura, aparentemente caótica, a bordo da qual vamos saltitando ao longo de uma cronologia que só com alguma boa vontade conseguimos reconhecer.

Do Clube da Serpente formado pelo grupo de boémios que vagueiam por Paris (do lado de lá) ao regresso a Buenos Aires (do lado de cá) que resvala finalmente para um verdadeiro circo de loucos, toda a obra é, na sua singularidade e no seu brutal devaneio, mais angustiante, mais visceral, mais real do que a ordem previsional presente na maioria das histórias clássicas. Nela, vamos viajando entre as grandes questões da humanidade e as pequenas insignificâncias do quotidiano.

Depois desta leitura, Cortázar entrou para a galeria dos notáveis. A leitura posterior de dois livros de contos elevou-o ao lugar cimeiro dos meus escritores favoritos. É aquele em cuja escrita melhor consigo rever, e até descobrir, aspectos do que sou, o que quer que isso seja. E não me considero louco… todos nós, talvez, mas só talvez, sejamos um pouco mais loucos do que admitimos perante os outros. No fundo, sabemos onde começam as nossas fragilidades. Só não sabemos onde terminam.

Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, (…) e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.

(terna sensibilidade com que a “fisionomia de um beijo” é descrita – capítulo 7)

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