Escolhi motivada talvez por uma certa raiva falar sobre o livro Pele Negra, Máscaras Brancas de Franz Fanon. Esse é o real motivo que me fez debruçar sobre uma literatura tão densa e ao mesmo tempo estranha aos temas anteriores. Pelo meu linguajar e forma de escrever nota-se a minha brasilidade. Ao olhar-me no espelho consigo identificar toda a mestiçagem que meu sangue carrega, mas, esse espelho só foi possível perscrutar quando cheguei à Europa, ao velho continente que invadiu e conquistou tantos territórios, auto declarando-se superiores àqueles que ali já habitavam.
Por que me assumir como mulher negra só ficou evidente agora? E, ao parar para pensar não foi o racismo velado, quando um parente perguntava enquanto estava grávida que tom de pele teria minha filha. Ou outro que afirmava que algo em completo desuso nas nossas casas de banho que é o bidé, era um mecanismo para que as prostitutas, travestis que vendiam seu corpo nas ruas limpassem a genitália pós uma foda apressada com um qualquer cliente. Por que não foi no Brasil, que Fanon me fez pensar na minha pele? A resposta é simples: eu não era vista como “negra” pelos meus pares, eu não era confundida com uma doméstica ou babá na zona sul carioca quando de branco, eu estava em meio aos meus. E para as antigas colónias o espanto e o estranhamento de ser o “OUTRO”, aquele que não compreende a articulação do país que migra é justamente trazermos essa ingenuidade da mestiçagem. Por que em Portugal sou tratada como mais uma africana (antes de me ouvirem falar) do que nos bairros chiques do Rio, onde e dependendo de onde esteja a truculência policial já te classifica como bandido pelo tom da minha pele. Porque diferentemente da constituição dos outros países colonizados somos um mosaico de etnias indecifráveis, mas que repetimos, até mesmo negros, a mesma reação de um branco: espanto, estranheza, exotismo, maldade. E isso não são décadas, são séculos e séculos de animalização de um corpo onde a tinta não sai com lixívia.
Estarei eu colocando todos as pessoas num mesmo pacote: negros versus brancos? Esse texto é uma denúncia bem palavreada para apontar os dedos e dizer racistas, todos vocês são RACISTAS. Não, não é isso! Ler Fanon, pensar sobre esse texto, escapar às fórmulas enlatadas de uma crítica ou apresentação é me por a frente do espelho e descobrir em mim, as falhas de um pensamento coletivo sobre o diferente ser temido e me tornar o diferente, e inverter meu eixo egocêntrico e perceber que enxergava e era cega. Perceber nuances de ancestralidade quando nunca parei para questionar de que descendentes escravos tenho origem? Por andar vendada não conseguia perceber que eu era um corpo, e sim ser (parafraseando Fanon) “o corpo que faz de mim uma pessoa que questiona!”
E, ainda sim, só me afirmar completa e sem máscaras, quando saí do meu mundinho Rio de Janeiro e encarei o silenciamento de uma Europa retrógrada e envelhecida. Pois assim como diziam os cristãos europeus que todo o diferente não tinha alma, já que aqueles que correram para as águas e se banharam quando o senhor assim os instruiu saíram brancos de toda a sujidade do mundo, de toda a sujidade do mal e aqueles que não seguiram com tanta rapidez tal ordem imperiosa ficaram marcados com o negrume indecifrável de uma noite sem luar. Ou recorreram a Caim, ou recorreram a segregação na América do Norte e a KKK, ou foram comparados a macacos, feras irracionais, ou receberam a bonificação de Isabel e foram libertos de seus grilhões.
Em Pele Negra, Máscaras Brancas o escritor denuncia a nossa inércia de autoafirmação, de nossa subserviência e nossa carência milenar de reconhecimento.
Sou NEGRO, mas quando posso dizer isso em voz alta sem o peso da inferioridade de ter de ser o melhor naquilo que se propõem a fazer… Enquanto pessoas brancas são apenas pessoas brancas, nós somos um CONTINENTE inteiro que converge nos mais diversos espaços e precisa sempre se impor, para que uma máscara branca não seja colada em nossos rostos e gestos. Finalizei o livro e descobri que sou uma de bilhões.