Foi o ternurento filme de Michael Radford com Massimo Troisi, de 1994 (que vi muito depois), que me levou, anos mais tarde, a procurar o livro de Antonio Skármeta. E a verdade é que durante a breve leitura das cento e trinta e duas páginas, nunca deixei de visualizar o rosto de Troisi – malogrado actor que não pôde testemunhar o reconhecimento do seu trabalho – sempre que o carteiro Mario Jiménez aparecia na Ilha Negra para entregar cartas ao poeta e aprender a sentir a poesia, ou quando, na tasca pesqueira de San Antonio, cortejava sem jeito Beatriz González.
– Beatriz. Fiquei a olhá-la, e apaixonei-me por ela.
Neruda coçou a sua plácida calvície com a ponta do lápis.
– Tão depressa!
– Não, tão depresssa não. Fiquei a olhá-la aí uns dez minutos.
– E ela?
– E ela disse-me: «O que estás a olhar, porventura tenho macacos na cara?»
– E tu?
– A mim não me ocorreu nada.
– Nada de nada? Não lhe disseste nem uma palavra?
– Assim nada de nada também não. Disse-lhe cinco palavras.
– Quais?
– Como te chamas?
– E ela?
– Ela disse-me «Beatriz González».
– Perguntaste-lhe «Como te chamas». Bem, já faz três palavras. Quais foram as outras duas?
– «Beatriz González».
– Beatriz González?
– Ela disse-me «Beatriz González» e então eu repeti «Beatriz González».
Já muito foi dito e escrito sobre a obra. Além de uma magistral parcimónia palavrosa (que arte dizer tanto com tão pouco!) o que guardo desde o primeiro momento, e talvez seja a razão pela qual este livro me disse tanto, foi a mestria com que o autor conseguiu casar o vernáculo com o romântico, algo que, sendo o filme maravilhoso, se perde na adaptação para o grande ecrã.
A escrita de Skármeta não tem apenas palavrões, mas um sem número de termos e jargões brejeiros que, não fosse a poesia de Neruda e a pureza (quase cândida) dos sentimentos de Mario, facilmente o texto resvalaria para o vulgar. A linha é ténue, mas O Carteiro de Pablo Neruda é um livrinho tão bom que decerto merecerá uma segunda leitura.
Li a ranhosa edição de bolso da Biis com tanto gosto que na altura ofereci o livro (a versão da Dom Quixote) por duas ou três ocasiões. Mesmo quem viu o filme (como eu já tinha visto), vai encontrar no texto o mesmo cenário, a inevitável colagem das personagens de Mario e Neruda a Troisi e Noiret (curioso como, quando no livro aparecia Neruda, era o actor Philippe Noiret quem eu via ao invés do verdadeiro poeta chileno!), mas vai descobrir todo um universo linguístico. Os exemplos são tantos que, pesem as poucas páginas, havia muito por onde escolher.
– Filhinha (…). O que te disse ele?
Beatriz tinha a palavra na ponta da língua, mas temperou-a uns segundos com a sua quente saliva.
– Metáforas.
A mãe agarrou-se à maçaneta da rústica cama de bronze, apertando-a até se convencer de que conseguia derretê-la.
– O que tem, mãe? O que ficou a pensar?
(…)
– Nunca te ouvi uma palavra tão grande. Que «metáforas» te disse ele?
– Disse-me… Disse-me que o meu sorriso se estende como uma borboleta no meu rosto.
– E que mais?
– Bem, quando disse isto eu ri-me.
– E então?
– Então ele disse uma coisa do meu sorriso. Disse que o meu sorriso era uma rosa, uma lança que se desembainha, uma água que estoira. Disse que o meu sorriso era uma repentina onde de prata.
– E então o que fizeste?
– Fiquei calada?
– E ele?
– O que mais me disse?
– Não, filhinha. O que mais te fez! Porque o seu carteiro além de boca há-de ter mãos.
– Nunca me tocou. Disse que estava feliz de ficar deitado junto de uma jovem pura, como à beira de um oceano branco.
– E tu?
– Eu fiquei calada a pensar.
(…)
– Filhinha, não me conte mais nada. Estamos perante um caso muito perigoso. Todos os homens que primeiro tocam com as palavras, depois chegam mais longe com as mãos. (…) Não há pior droga que o blá-blá. Faz uma taberneira de aldeia sentir-se como uma princesa veneziana. (…) Prefiro mil vezes que um bêbedo te apalpe o cu no bar, a que te digam que um sorriso teu voa mais alto que uma borboleta!
– Estende-se como uma borboleta! – saltou Beatriz
(…)
– «Umas metáforas»… Já viste como estás?
(…)
– Mãe!
– Estás húmida como uma planta. Tens uma febre, filha, que só se cura com dois remédios. Tabefes ou viagens. (…) Vá fazer a mala!