O verão nos bairros urbanos — o antes e o agora (e o que isso diz sobre a nossa saúde mental)
Pouco passa da hora de jantar e a noite prolonga o calor do dia. Uma ligeira brisa corre entre os prédios e o céu escurece devagar, mas as estrelas mal se veem. Estamos na cidade.
Há quarenta anos, o cenário seria outro: um espaço pejado de miúdos de todas as idades, pouco controlados pelos pais que assomavam, de vez em quando, às janelas, ou se sentavam pelos bancos de cimento — agora de ferro —, ou passeavam pelo bairro. Os garotos mais pequenos voavam em bicicletas com rodinhas, os mais afoitos corriam pelas ruas circundantes, roubando flores dos bonitos jardins das vivendas, os mais crescidos escondiam-se atrás dos prédios, ensaiando os primeiros beijos. Corriam, brincavam, discutiam e faziam as pazes, tudo no mesmo serão. Isto, depois de chegarem estafados de um dia inteiro de piscina ou de praia.
Um bairro simples e vivo. Surge a inevitável frase nostálgica: no meu tempo é que era bom.
Hoje, este espaço está vazio, em pausa. De vez em quando um vizinho passeia um cão ou apressa-se para chegar. Onde estão as crianças? Dentro de casa, certamente. A ver televisão ou de nariz enfiado num telemóvel. Há silêncio, portas fechadas. As crianças estão a ver televisão, a deslizar o dedo sobre um ecrã de telemóvel, ausentes do mundo físico. A rua já não é território de brincadeira.
Todas as gerações olham para trás com nostalgia e consideram que no seu tempo é que era bom. Contudo, a memória é seletiva e a comparação quase sempre injusta. A rua nem sempre era sinónimo de segurança. Acidentes, bullying, assédio, apenas eram questões menos discutidas ou visíveis.
No entanto, não há como discordar de que, neste processo de modernização silenciosa, a rua deixou de ser ponto de encontro para ser ponto de passagem. De espaço de liberdade passou a espaço de receio. Perdeu-se o burburinho das praças nos fins de tarde, os segredos guardados por bancos de jardins, os dias de verão esticados até à exaustão, o convívio com os vizinhos. Perdeu-se a rua enquanto distração, escape, terapia ao ar livre. Mudou a forma como vivemos, mas, também, a forma como sentimos.
Esqueçamos a romantização daquilo que foi o nosso tempo. Esta nostalgia não é um capricho.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, nas últimas décadas, tem-se verificado um aumento preocupante de problemas de saúde mental em crianças e jovens, sobretudo em zonas urbanas. A ansiedade, a depressão e o isolamento eram problemas distantes, quase inexistentes nestas faixas etárias. Hoje, fazem parte do quotidiano de muitas famílias. As novas tecnologias são, sem dúvida, um problema, mas, convenhamos, mais pelo contexto do uso.
Relevante poderá ser a ausência de alternativas: faltam espaços públicos acessíveis, seguros, estimulantes e pensados para o convívio intergeracional. Ou seja, o problema não é apenas onde estão os miúdos, mas o que deixámos de lhes oferecer no exterior.
A falta de vivência comunitária começa a ser assustadora. Afastámo-nos dos espaços públicos e recuámos para dentro das casas, tornámo-nos muito mais individualistas. Os verões de antigamente aconteciam em comunidade. Do movimento, do convívio, da liberdade controlada, do sentimento de pertença, passámos a bairros onde os vizinhos mal se conhecem. As crianças crescem em casa, em colégios, num mundo virtual, pouco na rua. Esta funcionava como uma terapia natural, ainda que a expressão não fosse sequer considerada. Era na rua que se aprendia a negociar, a brincar, a competir, a colaborar.
Como chegámos aqui? Por meio de múltiplos fatores: isolamento social, pressão académica, insegurança habitacional.
Talvez seja tempo de juntar o melhor dos dois mundos. Recuperar o espírito dos verões de antigamente não implica regressar ao passado, mas, sim, reinventar o presente com base no que funcionava, corrigindo as falhas. Começar por devolver a rua às crianças, promover encontros, jogos, festas. Organizar noites de cinema ao ar livre, reocupar os bancos de jardim e atividades intergeracionais. Sobretudo, criar tempo livre.
Vários programas, como o Há vida no meu bairro, em Lisboa, ou Rua Direita, no Porto, podem contribuir para criar espaços que devolvam a rua aos cidadãos. No entanto, o maior e melhor trabalho será sempre realizado por cada um de nós.
O verão era tempo de descanso, de calor, mas, também, de ligação. Afeto e comunidade. Essencial para a nossa saúde mental.
No meu tempo é que era bom? Talvez a pergunta deva ser: o que podemos trazer do passado para melhorar o presente?
Só temos de sair de casa. E reencontrar o outro. Os bairros urbanos ainda têm esse potencial. As noites quentes de verão ainda estão cá. Precisamos de reaprender a partilhá-las.
Nota: Este artigo foi escrito segundo o novo acordo ortográfico.