Não sei falar sobre os passos que pisam a chuva, que pisam outros passos, que caminham junto ao rio carregando um coração demasiado cheio para se conseguir encaixar num pequeno canto do tórax. É um coração-tsunami que inunda a vida numa frequência de 120 contracções por minuto, por vezes descompassadas, sempre espantadas. De repente, a garganta, os gestos, o olhar são destruídos, renascem, nada mudou, tudo mudou.
Não sei falar sobre a forma como o sol bate num corpo que se espalha por uma cama inteira, mesmo que fisicamente esteja só na ponta. Ao acordar – com o calor entre os poros e o Verão ora tão breve ora tão inteiro, ainda sem recordar quem somos e com o sonho preso nas pestanas –, não procuramos nada além do sol que nos entrou pelas pálpebras, portas mal fechadas, lençóis semitransparentes.
Não sei falar sobre como chegamos à conclusão de que a tranquilidade não é feita de silêncio. É feita de música. É o pó a dançar na luz a velocidades que nunca vimos, os dedos a intrometerem-se na dança, a criar nas paredes sombras alegres. É acordarmos com um acorde preso à ponta dos pés, equilibrado na anca, agarrado à vida.
E definitivamente não sei falar sobre as asas. Oh, as asas. Sentimos que nos rompem a carne, que são lentas e desajeitadas, que nos pesam. Mas são asas na mesma. Não saberíamos serrá-las, ignorá-las, derrubam tudo à nossa volta quando não temos espaço suficiente para ser. E não saberíamos deixar de viver sem todo o mundo que elas nos prometem.
Talvez não se escreva poesia suficiente sobre como o nosso peito cresce quando não precisamos de outros pulmões para respirar. Percebo. Também eu não sei como falar disto.