Encontrámo-nos.
Eu estava louco e tu estavas nua.
Não havia nenhuma relação entre isto. Não havia. Éramos desertos solitários em partes distantes do mundo e da vida; talvez eu estivesse louco de dor e talvez tu estivesses nua de alma. Não, uma coisa não implicava a outra, mas a minha loucura e a tua nudez acabaram encontradas e entrelaçadas e a fazer parte uma da outra. Eu estava louco e tu estavas nua e fomos duas sombras que se tocaram em espelhos partidos.
Olhámo-nos e não entendemos o que é que fazíamos nas trevas, por isso demos as mãos e sorrimos.
Eu abri a porta empenada. O quarto estava frio pelo vazio e desgastado pelo efémero. O papel de parede empolado encaracolava e mostrava a parede crua cheia de cola amarela e peganhenta. Era um quarto que tinha passado por muitas vidas, e de repente tudo me sabia a melancolia. Nem o balançar das tuas ancas afastou o meu torpor, nem o toque dos teus dedos no meu pescoço. Deitámo-nos na mesma cama com medo de nós próprios, costas com costas, e nenhum de nós fechou os olhos naquela noite. Eu observava a porta fechada e umas correntes enferrujadas que se escondiam num canto, lembravam-me ilusões que nos prendem ao que não somos. Tu olhavas para além da janela aberta, pode ser que tivesses visto a lua ou que tivesses encontrado as razões de termos dado as mãos naquela manhã, naquele lugar perdido. Perdidos nunca estivemos – estivemos sempre num qualquer lugar.Estamos perdidos, mas por dentro.
As sombras na parede dizem-me que o tempo está a passar, e os dois pensamos no mesmo sem nenhum de nós saber.
Na luz da manhã eras imperfeita. Entre os lençóis a tua imperfeição chegava a doer-me, a beleza do teu corpo arqueado naquela imensidão de tecido, o prazer escrito na tua boca, nos teus cabelos, nos teus gestos. E os olhos, e os teus olhos? Partiam-me o coração e voltavam a fazê-lo bater. Sou assim com as coisas que me comovem, e tu eras maior do que a vida. Depois, quando uma nova noite ia já longa e fria, parecias muito pequena, o corpo desnudado e minguado entre as almofadas gigantes. Não dormias e eu não adivinhava no que pensavas, não me metia entre ti e as tuas histórias, entre ti e as tuas lágrimas. Tocava-te ao de leve numa protecção inútil. Tocava-te só com a ponta dos dedos e percorria o mundo devagar, porque existiam cidades na tua pele às quais já tinhas pertencido. Tinhas o cheiro dos fantasmas que querias esconder, eras infinito e caos e calma ao mesmo tempo. Fomos folhas perenes naquela semana. Eu protegia-te sempre, todas aquelas noites quando tu fingias dormir e eu fingia que te amava.
No fim, mostraste-me as tuas mãos sujas de sangue seco, quase castanho. Eram pedaços secos da vida de alguém, nessas mãos. Tinhas nas palmas raízes que te prendiam ao sonho, não sei bem a qual, talvez nem tu saibas. Contaste-me o teu passado trágico e eu percebi que essas mãos estavam cheias de sortes, cheias de trevos que te crescem e que estás sempre a arrancar, entre o farta e o resignada. Cega, diria eu, quando só vês o sangue, mesmo depois de o teres lavado mil vezes. Cega, que te prendes às impossibilidades que teimas em não admitir.
“Não existe só magia”, digo-te. “Não existe só dor.”
Tu ficas muda e os teus olhos vão para longe, baços e ausentes. Eu não percebi que era aí o fim. Nem sequer o percebi quando saíste pela porta. Só quando não voltaste. E pensei que tinhas as mãos cheias de tudo e eu nunca soube que segredos me escondias.