Mendigo

Sentava-se na esquina suja de uma rua qualquer, escura e perigosa como todas as outras, e fechava os olhos. Secretamente, sorria para dentro. Secretamente, sabia que escaparia daquele mundo morto e sonharia. Sonharia com a liberdade.

No seu sonho era mais um grão de areia num deserto sem fim. Era todo o mundo unido, toda a felicidade que existia. Era uma lágrima, o suspiro de uma pobre idosa a quem a morte acompanha. Era o sorriso de um bebé.

No seu sonho, voava. Estendia umas asas brancas enormes e atirava-se a um precipício infernal, aterrando na relva verde do paraíso.

E quando acordava, quando abria outra vez os olhos inocentes e sorria, sentia-se livre. Sentia-se um ser individual, uma pessoa única; uma pessoa. Já não era esse mendigo sozinho na noite. Já não era outro mendigo noutra esquina de outra rua do mundo. Era ele. Era jovem e era velho. Já não tinha fome, nem frio, nem calor. Estava seguro, livre, pleno. Não estava só; estava com ele mesmo.

Levantava-se com esforço e seguia o seu caminho invisível e interminável, como se se dirigisse a algum lugar em concreto, quando somente procurava o seu sonho em mais uma esquina.

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