Deixei o trabalho para trás, mais cedo do que habitual. Chovia e apesar de amar chuva, tinha decidido viajar de autocarro até ao meu destino. Entrei, sentei-me, folheei um livro e viajei. A paragem chegava e eu descia.
Já com os dois pés no chão, consegui vê-la: farta em cabelos brancos envoltos por um lenço e um gorro. Tinha vários casacos vestidos. Calças a tapar as pernas e nos pés umas meias encharcadas acompanhadas duns chinelos ensopados.
A cara, livre de frio, mas mais inundada que os pés e as poças de água da estrada. As mãos famintas (re)mexiam o caixote do lixo em frente a uma frutaria. Ninguém se aproximou. Com certeza que a vergonha de quem passava de cabeça baixa era maior que a da senhora que tentava matar a fome.
Ao lado, um café estava aberto. Parei e atirei as mãos aos bolsos. Senti moedas e avancei. Toquei-lhe no ombro. “Vamos comer alguma coisa quente para aquecer?”
Recusou, dizendo que o dinheiro faz muita falta. Remexeu no caixote do lixo. Que valente murro no estômago me deu.
Insisti. Apresentei-me e permiti-me escutá-la. Era a senhora dona Isabel, cheia de frio, fome e nada. A muito custo, deixando o orgulho naquele caixote de lixo onde sujou as mãos, rumou comigo ao café.
Comeu, aqueceu-se, falou-me dos animais de rua que tenta alimentar. “As pessoas deitam muita comida fora, sabe menina? Se não der para mim o que encontro, pode dar para eles que não chegam ao lixo.”
Contou-me ainda que tem onde morar, mas são ar e vento o que mais come.
Enquanto alimentou o estômago, escutei tudo o que me disse. Paguei com um plástico rectangular, deixei-lhe todas as moedas que tinha e um cachecol seco e quente.
Agradeceu repetidas vezes com uma gratidão imensa. “Deus a abençoe menina. Abençoe muito. E muitas felicidades para si.”
Segui o meu caminho à chuva e agradeci-lhe ainda me ser possível escolher entre pão e arroz em vez de ar e vento.