Encostada à vidraça via quem passava na rua. O movimento era contínuo e rotineiro. Assemelhavam-se a formigas que nunca param de labutar. Eram pessoas que regressavam a casa, depois de um dia de trabalho. O céu estava a ficar mais escuro e a chuva começava a cair. Fininha, envergonhada e ainda em surdina. Era o mundo do trabalho que partilhava o mesmo horário, o movimento pendular que obrigava tantas pessoas a este tormento. Onde iriam todos? Que vidas teriam? Quais seriam os seus sonhos,as suas ambições, o seu verdadeiro objectivo de vida? Seriam peças de um xadrez mecânico ou retiravam satisfação do seu trabalho? Ficou curiosa.
Estava aprisionada naquela casa onde ninguém falava com ela. Tinha-se tornado invisível. Até a jarra com flores ou mesmo sem elas, tinha mais importância. Havia um lugar de destaque e ela vagueava de sala em sala, com pezinhos de lã e mente desarrumada. Há quanto tempo estava ali? Não se lembrava. Seria muito? Sentiu um arrepio. Não era frio, mas sim uma sensação estranha como se estivesse ali alguém e ela não visse. Como sentiriam os cegos? Não viam. Talvez isso não tivesse importância. Não podiam ter saudades daquilo que não conheciam. Sentiu outro arrepio. Mau. Que seria? Voltou-se, mas estava tudo na mesma.
Ouviu um barulho. Caminhou até à varanda. As portas estavam abertas e o vento empurrava-as com força. A chuva tinha ganho mais intensidade. Agora eram pingos gordos, anafados e barulhentos. Seria melhor deixar tudo fechado para a água não inundar a sala. Olhou para cima. O candeeiro era estranho, parecia um barco invertido que não servia para viagens, mas somente para as recordações. E aquela mesa, naquele canto era tão austera que não convidava nem à leitura e muito menos à escrita. Da cadeira gostava. Adaptava-se ao seu corpo e permitia-lhe algum repouso contínuo.
Um relâmpago e depois um trovão. A casa tremeu e ela encolheu-se. Os arrepios foram o prenúncio da trovoada. Era assim, mas nunca descodificava a tempo. Por isso estava naquela casa que ela não gostava nada. Novo relâmpago seguido de trovão. A luz apagou-se com um pequeno clic. Tudo ás escuras. Talvez fosse melhor assim. Tinha mais clareza para pensar. Sempre gostou do escuro e do que ele pudesse ter para oferecer. Sentiu uma paz intensa. Uma pequena luz ao fundo. Era a trovoada no outro ponto da cidade. Anunciava-se e era vaidosa. Dava nas vistas.
Voltou à janela. Os vidros estavam embaciados. Com o dedo fez um risco e depois outro e ainda mais outro. Saiu-lhe um desenho. Nem sabia que conseguia desenhar. Estava a descobrir-se. Outra vez aquela sensação estranha. Ouviu outro barulho. Olhou para baixo. Era a sua barriga. Tinha fome. Estava explicado. Ainda não havia lua e não podia sair dali. Que sítio horrível! Como é que tinha ido ali parar?
Bateram à porta. Outra vez. Voltou-se e viu entrar, na penumbra, uma senhora sorridente, com um tabuleiro na mão. Está na hora do lanche. “Coma minha linda que lhe vai fazer bem. Não está tristinha, pois não?” E fez-lhe uma festa no cabelo. “Pobrezinha. Que lhe terá acontecido para não falar? Que nunca aconteça aos meus.” E benzeu-se cheia de devoção. Subitamente a luz voltou e um gato branco, gordo e reboludo entrou na sala. Ouviu-se um ronronar tímido. Ela sorriu, levantou-se, pegou no gato e disse:
– Anda cá meu doce. Vem para o meu colo!