Londres, Memória da Adolescência

Foi em 1994 que andei de avião pela primeira vez e, mais do que o destino, era essa a grande novidade.

A viagem fora oferecida a toda a família pela empresa onde o meu pai trabalhava, como reconhecimento pela sua dedicação. Seguiram-se outras três, sempre a Inglaterra. Das quatro viagens, três centraram-se a Londres e a cidade ficou em mim gravada para a vida.

Na década de noventa não havia internet e a globalização era um termo vago. Londres trazia a novidade que eu bebi como um crente à descoberta do Paraíso. As imagens mais vivas são dos álbuns da música de que eu gostava e que não encontra em Portugal (e que ainda hoje é a minha música): mal aterráramos em Heathrow e já eu gastava as libras que levara em duas cassetes dos ABBA; mais tarde, na loja da HMV (etiqueta entretanto extinta) trouxe um Best of de Simon & Garfunkel em CD (o que havia em Portugal tinha catorze canções e aquele trazia vinte!) e o concerto do Cliff Richard em VHS (à data, o único artista com nº1 em cinco décadas diferentes), resultou das horas negociadas com os meus pais para ficar na maior das duas Virgin’s Megastores que havia na Oxford Street.

Passei pelos anos de faculdade com um conhecimento mais profundo de Londres do que de Lisboa, pois pisar aquelas ruas era como participar num filme. De facto, Londres é a cidade mais cinematográfica onde estive (admito que NY também o seja) com os táxis e os autocarros, as cabines telefónicas e o Big Ben (“o relógio mais certo do mundo”), Covent Garden, Hyde Park e Kensington Gardens, Regent’s Park e St. James Park (o espaço de que mais gostei entre os périplos pelos parques londrinos), os vendedores e artistas de rua e uma profusão de sem-abrigo que marcou uma clivagem gritante face ao que eu não via em Portugal (pouco ia eu a Lisboa durante a adolescência).

No Museu da Ciência, demorámo-nos oito horas (!) com a divisão mais interessante a cifrar-se na loja de recordações; uma exposição temporária celebrava a recente construção do túnel sob o Canal da Mancha! Esse dia contribuiu decisivamente para o meu trauma com museus: mais de uma hora a ver quadros, estatuetas ou maquetes e começo a contar o tempo em que não estou a sentir o pulso à cidade.

Presenciámos um assalto na Disney Store (outra novidade), perdemos a minha irmã mais nova (que com seis ou sete anos teve a lucidez de se sentar no passeio de uma rua apinhada de saltos altos, gravatas e máquinas fotográficas enquanto a minha mãe voltava para trás com o pânico a formar-se), e deixámos passar dois metropolitanos antes de conseguirmos entrar numa composição em hora de ponta, depois de escadas rolantes intermináveis e túneis aromatizados de óleo, acompanhados por deliciosas peças tocadas por artistas de rua.

Viver e/ou trabalhar em Londres deve ser a coisa mais horrorosa do mundo e no entanto, aquela cidade permanece em mim com a magia das primeiras vezes.

No Madame Tussauds, ao entrar na câmara dos horrores, perguntei ao meu pai se um segurança que guardava a entrada era de cera, cuidando que ele não me entendia: não só percebeu a minha pergunta como ripostou para o meu pai:

– O senhor não vive em Alapraia?

– Vivo? Porquê, o senhor conhece-me?

– Sim, eu vejo-o no café do Vitor às vezes. Moro no prédio em frente à sua casa!

Surpresa, coincidências e a explicação: num trabalho de Verão, fazia segurança no museu aproveitando as folgas para conhecer a cidade.

Com os meus pais e as minhas irmãs, os passeios pela cidade pincelavam as cores da infância, da construção das memórias de família e da vida desobrigada, num ambiente que, espalhando a novidade em cada passo (olhar para a direita antes de atravessar dava-me nós no cérebro), nos aproximava.

Londres tem tudo aquilo que uma cidade se tornou para mim, tendo lá iniciado a observação da vida urbana. Londres tem tudo o que um jovem que nunca antes tinha viajado de avião ou dormido numa cidade ambiciona conhecer desse lado cosmopolita. Londres tem tudo o que um turista citadino pode usufruir com a sua multiculturalidade que impressiona pela riqueza, diversidade e aquela sensação que nos transporta para outra dimensão. Londres tem tudo o que a tradição britânica aporta, com bandeirinhas por todo o lado e as exaustivas referências ao passado imperial britânico, com o orgulho histórico e a presença de Lords, Ladys e realeza ao virar de cada esquina.

O que Londres não tem é bom tempo, durante nove meses do ano, mas perdoo-lhe (odeio chuva), pois, em Londres, depressa esquecemos haver algo a pairar acima do palco londrino, cenário onde me sinto actor e espectador ao mesmo tempo.

PS: Depois dessas três visitas, regressei outras três: já com o London Eye a revirar a atenção sobre Londres, visitei os museus que queria (Cabinet War Rooms e Imperial War), assisti a musicais (O Fantasma da Ópera e Os Miseráveis) e pude sentir a cidade já com muitos filmes na galeria (recordo Blow-Up, O Ódio que Gerou o Amor e Domingo, Maldito Domingo como os mais icónicos, onde a cidade quase compõe uma personagem). Contudo, nada é comparável à surpresa iniciática de entrada no ritual deste passeio pela História a céu aberto.

 

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