Likola

Força, pai, disse a menina dos meus olhos e eu, de halteres um palmo acima do peito, conjurei a raiva e devolvi, com estrondo, a barra ao respectivo suporte. Ergui-me e enterrei o rosto suado na toalha e vi a minha filha admirar-me orgulhosa mal ela sabendo que rareava cada vez mais essa força que me pedia. Subi da cave para o apartamento e ouvi os passinhos dela. Tranquei-me na casa-de-banho e pressenti-a do lado de lá da porta, enquanto me olhava ao espelho à procura de um latejo na têmpora, uma palpitação no tórax, um sangramento na esclera.

Com a nuca debaixo do chuveiro de água fria, imaginei-a sentada no balcão da cozinha com os pés a balouçar, como se pousada ali pela mão mística da minha mulher. Vamos, pai, estás atrasado, advertiu e eu ensaboei, enxaguei e sequei o corpo, consciente do ritual como se visto de cima, como mais um dos rituais que me iam segurando à vida.

Está verde, disse a mãe dela e eu pisei o acelerador e ultrapassei e acelerei a fundo e ouvi-a rir. Do outro lado de uma curva cega surgiu o litoral e o sol iluminou o interior do carro e o cabelo dela irradiou e vi o seu perfil recortado contra as fachadas das vivendas antigas que já existiam antes de existir a estrada marginal.

Estacionei o carro, desci à praia e passeei pelo topo das dunas. A minha filha brincava à beira-mar, do tamanho de um búzio se comparada com as vagas que vinham desmoronar à praia.

O Capitão Silva, virando costas ao vento e abrigando-se dentro da gabardine, acendeu um cigarro. Depois, de olhos postos no horizonte, expeliu a primeira baforada. “A vingança é um prato que se serve frio,” disse. “Não vou tentar demover-te, mas não posso envolver a corporação. Quando lá chegares, procura pelo Capitão Muchanga e diz que vais da minha parte. Ele orienta-te com arma e viatura.” O Capitão Silva enterrou a beata na duna e estendeu a mão onde eu depositei a minha arma e o meu distintivo. “Boa sorte,” desejou e vi-o transpor o tapete de chorões e sacudir a areia da sola dos sapatos antes de entrar no carro-patrulha.

De fato e gravata, desembarquei do Cessna e levei uma chapada de calor. Uma energia brotava da terra vermelha como da pista brotavam raízes selvagens e das figuras esquálidas, olhos escancarados. Empapado em suor, esqueci por instantes o propósito sanguinário da minha viagem até ver uma criança rota e descalça dirigir-se a mim de mão mendicante. A violência ora viajava comigo, ora me precedia.

“Táxi, patrão?” ofereceu o dono da mão que se lançara à minha mala. “Sou o Simão, braço-direito do Capitão Muchanga,” insistiu o homem de camisa vestida e lavada todos os dias. Tinha os dentes estragados. Cheirava a catinga. Desconfiei dele, que enxotava as crianças mendigas e reparava em mim que reparava nas mulheres que vendiam fruta no jardim do aeródromo. Simão mostrou o revólver entalado no cinto e apontou para os dois policias munidos de metralhadoras, também estes de fardamento coçado e arma descomissionada. Despiu a máscara do subserviente e, com o revólver apontado ao meu rim, arreganhou os dentes para que eu finalmente entendesse que também ele era bófia.

No quintal da esquadra, uma mulher era vergastada sob o olhar esgazeado de um bando de miúdos. A mulher ululava numa língua para mim desconhecida. Uma bebé chorava, sentada na fralda, aos pés de um polícia.

Simão ordenou-me que avançasse até um gabinete de janelas partidas. Abriu a minha mala sobre o tampo de uma escrivaninha e, junto com o comparsa, pilhou a minha bagagem, os dois regozijando no mesmo idioma da mulher. “O que é que você queres do Capitão Muchanga?” perguntou.

“Venho matar um homem.”

Simão parou de mastigar a bolacha do pacote de bolachas roubado da minha mala. “Tens euros?” perguntou.

“Escondidos no forro do casaco.”

Simão virou o casaco do avesso e, com os dentes, tentou, sem sucesso, primeiro abrir as costuras, depois rasgar o forro. “Vai buscar uma tesoura,” ordenou ao comparsa que, à ordem, saiu do gabinete.

Não o mates, aconselhou a minha mulher. Mantém-te focado.

Concordei com ela e, lançando mão à nuca de Simão, entalei-lhe a cabeça dentro da mala e fechei o fecho éclair em torno do seu pescoço.

O Capitão Muchanga, homem de cara redonda e baixa estatura, vestindo farda azul-marinho de manga curta e quépi dois tamanhos acima, entrou acompanhado do homem que fora buscar a tesoura. Ainda com a cabeça enfiada na mala, Simão bateu continência e a sua voz ouviu-se abafada: “Capitão, este branco diz que vem matar uma pessoa.”

O Capitão franziu o sobrolho. “O Silva informou que você vinha reclamar um terreno.”

Eu disse: “Tenho comigo uma habilitação de herdeiros que me confere três hectares de praia na margem norte da baía.” Soltei o Simão, abri a mala e retirei, por entre as camisas, a mica onde guardava a habilitação.

O Capitão recebeu o documento. “Quem é o homem que vens matar?”

“Venho matar o dono do terreno, o meu pai biológico.”

“Como se chama o teu pai?”

“Faria.”

O Capitão exigiu a tesoura. Aproximou-se de mim e cortou uma madeixa do meu cabelo. “O Simão leva-te ao teu pai. Eu vou ao curandeiro com o teu cabelo para garantir que completas a missão. Em troca, quero um hectare da tua praia.”

Apertámos a mão.

“Preciso de mais um favor,” disse.

“Qual favor, esse?”

“Preciso de uma pistola.”

“Não,” disse o Capitão. “Se queres matar o teu pai e quebrar likola tens que usar catana.”

Li quê?”

Likola, vínculo transmitido por via uterina, pressupondo a descendência de um longínquo antepassado comum,” explicou. “Se o que realmente queres é vingança, faz como te digo e corta o teu velho com uma catana.”

Segui Simão até às traseiras da esquadra onde enchemos os cantis com água proveniente de um bidon de 200 litros. Do lado de lá do muro, tínhamos à espera o homem da tesoura a segurar aberta a porta de um veículo-patrulha. Entrei para o lugar do morto. Simão posicionou-se ao volante. O homem da tesoura instalou-se na caixa aberta da carrinha.

“Bolinho, tio?” Ouvi uma voz perguntar e descobri uma menina com um cesto, por debaixo da moldura da janela, a vender bolos de feijão frito. Vasculhei os bolsos vazios. Simão deu à ignição e a carrinha estremeceu. O homem da tesoura enxotou a menina. Por mais que soubesse que estava a fazer asneira, acabei por beber um longo trago do cantil.

Atravessámos a península e embrenhámo-nos no mercado. Tentei imaginar o velho: o Subdirector a viver na poeira lânguida? Desembocámos na marginal onde fomos recebidos pelo oceano. O meu pai gostava de barcos, isso eu sabia. O Subdirector gostava de navegar até ao Bugio para torturar prisioneiros.

Sobretudo mulheres, acrescentou a minha mulher. Lembras-te como gostava de torturar a tua mãe? Lembras-te como entrava na cela e te alçava pelo antebraço e te punha do lado de fora da porta de aço e se fechava com ela enquanto tu eras levado pelos guardas? Concentra-te na tua missão e, assim que o vires, corta a garganta a esse cabrão e pára de pensar no mar azul-cobalto e nos olhos grandes das crianças que fazem lembrar os da nossa filha. Vinga-te. Não me deixes ficar mal.

Entrámos no bairro sulcado pelo recife. “Chegámos,” anunciou Simão e estacionou a carrinha diante de um alpendre de argila onde uma mulher de tronco nu amamentava um bebé. Por cima da porta, pintado à mão num pedaço de casco de barco, o nome Faria. Subimos ao alpendre.

“Boa tarde, mamã,” cumprimentou Simão.

“Boa tarde, papá,” respondeu a mulher.

Fiz uma festa na carapinha do bebé. Cobicei os seios lactantes da mulher de pele brilhante e lábios carnudos. Pai, ouvi a minha filha dizer, tens a certeza de que queres cortar a garganta ao avô e sujar a areia de sangue? Nauseado, forcei o esfíncter para não me esvair em diarreia. Apoiei a mão na fachada de pau-a-pique e calquei uma osga que se escapou por entre os meus dedos. Já no interior da casa, apesar de ensombrado, continuei a ferver.

No fundo do corredor, Simão entregou-me a catana. “O teu velho costuma ficar sentado à mesa no centro da esplanada,” disse e abriu a porta das traseiras.

O sol encadeou-me os olhos. Estávamos na praia. Pisei as redes de pesca, evitei pisar os cacos de vidro, reprimi o impulso de vomitar. A esplanada estava deserta.

“Abdala!” chamou Simão. “Onde está o tuga?”

“Está no mar,” respondeu Abdala, torcido pela pólio, sentado numa cadeira-de-rodas enterrada na areia, e apontou para a beira-mar.

O velho lá estava, corcunda, com os pés enterrados no lodo, a amanhar um peixe, a sua silhueta recortada contra um navio fantasma que não percebi se flutuava, se jazia, encalhado nos barrancos da outra margem da baía.

“Venho já,” anunciei e corri a refugiar-me por detrás do pequeno farol. Baixei as calças. Estava desidratado, anímico, prestes a cair para o lado na areia húmida. As crianças, a brincar nas cavernas dos barcos, riram constrangidas, levando as mãos à boca, à barriga, divertidas pelo makunya que, de fato e gravata, combatia um ataque de diarreia, escondido no lado escuro do farol.

O velho jogou as entranhas do peixe ao mar e regressou à esplanada. Depositou o peixe no alguidar que Abdala trazia ao colo. Sentou-se numa cadeira de vime, outra vez voltado para o mar.

Vai, ouvi a minha mulher dizer. Não vaciles. Lembra-te do que ele te fez passar. Vinga-te ou nunca terás paz. Vinga-te, por mim. Pela nossa filha.

Empunhei a catana.

O velho tinha os olhos verdes lacrimosos e cheios de cataratas. Franziu o rosto ao sentir-se ensombrado pela minha presença que se interpunha entre ele e o sol que, àquela hora, incidia em ângulo agudo na esplanada. “Quem és tu?” perguntou.

“Sou o teu filho.”

“Qual?”

“O que geraste com uma prisioneira.”

O velho já se esquecera dessa vida. Abdala temperava o peixe. Simão abria uma garrafa de cerveja. O homem da tesoura armava mesa e cadeiras para quatro.

O velho chamou pela mulher do alpendre.

Reparei que ela tinha também olhos verdes.

“É o meu bisavô. E esta é a trisneta dele,” disse a mulher e mostrou a bebé que há instantes amamentava.

Chegou o ouvido à boca desdentada do velho que balbuciou. Posicionou uma cadeira na areia, para que eu me sentasse ao lado do homem que me infectara com a doença da violência e da melancolia, o homem de quem eu era credor e que me iria pagar com uma herança de sangue e de terra, o meu pai.

Calma, pai, disse a menina dos meus olhos. Sabes, ao menos, usar uma catana?

As duas pregas verticais na garganta do velho, prontas a ser seccionadas como fios de cera agarrados a uma vela extinta. Um torcionário fascista que fugira nos anos setenta, deixando para trás o filho da prisioneira a quem engravidara durante cinco anos de sevícias. O filho que se tornara, ele próprio, um polícia.

“Peguei fogo à minha casa,” confessei. “Enraivecido, louco, bêbedo, peguei fogo à minha casa, com mulher e filha dentro.”

Caí de joelhos na areia e entreguei a catana ao velho. “Força, pai. Vinga a morte da minha família.”

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