Um suave toque

Foi assim que te recordei, naquela madrugada de luz difusa e de muito calor. Ainda não havia nada que se pudesse sentir, mas eu toquei-te, mesmo sabendo que era proibido e que não o podia fazer. E senti. Sei que senti, pois estremeci quando percebi que afinal sabia como o fazer.

A faca ainda estava na minha mão, mas não sei como foi lá parar. Apenas a vi quando aquele fio de sangue escorria pela sala e deixava uma mancha forte no tapete branco. Os olhos sentiam que havia ali um íman, uma atração a que não se podia resistir. Sangue. Vermelho e não era de paixão.

A luz ia entrando envergonhada e sonsa. Ela sabia o que tinha acontecido, mas não sabia como o dizer. Ela é que não sentia e não estava impedida de o fazer. Simplesmente não sabia o que era. As sombras mostravam o que o chão tinha, as marcas de uma noite que jamais se repetiria. Uma névoa pairava no teto.

O corpo estava ali. Os olhos continuavam abertos como se ainda quisessem gravar a vida, mas essa já se havia escoado há muito. Nem a lembrança que restava no pó da mobília, poderia explicar o que se tinha passado. Foi tudo tão súbito que nem as fadas com varinhas mágicas conseguiriam desfazer o que era óbvio de acontecer.

Contudo a paz reinava no ambiente como se a música de fundo fosse uma qualquer sinfonia de amor, ou heroica, com címbalos fortes ou harpas que iam soltando notas de poesia. Os dedos já não dedilhavam, mas o som ainda não tinha esvaído para o exterior. Dir-se-ia que as janelas choravam, mas essa dor era simbólica e ténue.

A lua ainda olhava, estupefacta com o sucedido. Tanta alegria que se pode sentir e tanta dor que aniquila o que de bom se tem. Assim é a vida que se tem todos os dias e que regressa sempre nova. O cansaço era maior e o gato, com voz lamechas, miava à porta da sala. Nem se atrevia a entrar. O ar estava tão pastoso que o respirar era como uma faca no peito.

A noite fez-se para amar, assim ouvira dizer e ouvia as vozes certas, as que lhe indicavam o rumo certo. Não era apenas o bater do coração que importava, mas sim o que estava impresso na pele, no íntimo e na dor que tinha encontrado um poiso certo e seguro. Aquilo era impossível de suportar e tinha que sair. Não, o amor não espera que o coração fique alinhado.

Um toque, tão suave, bem ao de leve, junto ao órgão resistente ao bater, um som guinchante de sístoles e diástoles que se perdiam em noites de insónias e de terrores. Sentia-se o ensurdecedor pensamento desviante. Era por pouco. E finalmente tocou. Tocou-se, como se fosse de veludo. Com tudo o que ainda lhe sabia a não ter. Tocou-se uma outra vez. E outra ainda mais.

O sangue brotou. Primeiro quente e depois com um cheiro horrível a entranhas virgens de sentir. Mas sentiu. O toque era aquele. Voltou a sentir e a dor por fim chegou. Nem um lamento soltou. Subitamente uma parte levantou-se e a outra caiu. Seria aquilo a morte? A experiência era extrassensorial. Via tudo e não sentia mais a dor nem a raiva de sempre. Perfeito.

No chão, jazia o corpo. A faca estava espetada junto ao coração e os dedos dos pés estavam esticados. Um alinhamento correto com a decoração da sala. A morte pode ser bela se com ela levar o que não houve. Uns vivem o que há e outros bebem o que não têm. Um cenário terno. Em redor, um coração bem desenhado, acolhia no seu seio o que deixara de viver.

E recordei-te mais uma vez. A luz crescia e a manhã esticava-se como se fosse uma menina. A libertação das grilhetas, do horror e da guerra sem fim, chegara. Aquele era o momento de apaziguar as ânsias e de encontrar o novo rumo a seguir. Eu deixei de o ser e assim te enterrei para sempre. A morte pode ser terrivelmente libertadora.

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