Como se veste uma feminista

Existem diversas vertentes do feminismo, muitas discussões, muita gente achando que as mulheres querem ser superiores aos homens e muita informação errada e falsa circulando por aí.

Eu quero pensar que sou feminista. Mas claro, assim como todo mundo, a minha realidade é um pequeno recorte do mundo. Sou branca, nasci em uma família de classe média, tive acesso a boas escolas, morei, estudei e trabalhei em diferentes países, casei, tenho uma filha e vivo uma vida confortável. Por mais que eu queira ser feminista, a minha visão sempre vai estar referenciada por essa minha vivência, e o meu feminismo não é igual ao de outras mulheres que vivem outras realidades.

Com tantos feminismos, eu tenho mais dúvidas do que respostas e, por mais que eu estude e tente entender as outras mulheres através da vivência delas, eu sei que sempre serei parte desse meu recorte privilegiado.

Dito isso, o assunto que eu quero tratar aqui hoje é sobre o que as roupas podem dizer sobre o feminismo. E farei isso da forma que é me mais familiar, falando sobre uma série de televisão.

Vou referenciar uma série chamada “A Diplomata”, que está disponível na Netflix. Não se preocupem que dessa vez eu não darei spoilers, quem ainda não assistiu ou não terminou, pode continuar lendo tranquilamente.

Essa série conta a história de um casal heterossexual de diplomatas americanos, ambos muito reconhecidos em seu trabalho. Em certo momento, a mulher, chamada Kate, é convidada para ser embaixadora dos Estados Unidos em Londres e eles vão. O marido é um cara branco, hétero, de meia idade e rico, nem preciso dizer mais.

Muitas coisas acontecem, a Kate é excepcional em seu trabalho, seu marido sempre lá dizendo que quer ajudar, mas atrapalhando e ela sempre duvidando de si mesma. Duvidar de si mesma é algo que praticamente toda mulher faz.

Porém, o que chamou a minha atenção foi que em todos os episódios existe uma mini crise de vestimenta. Teoricamente uma embaixadora tem um estilista pessoal, um maquiador e um cabelereiro, mas a Kate só quer usar seus terninhos pretos e mal penteia o cabelo. E quando eu digo que isso é assunto em todos os episódios, eu não estou exagerando.

E o que isso tem a ver com feminismo?

Primeiro vamos imaginar se a situação fosse ao contrário e o marido dela fosse um embaixador. Se ele só quisesse usar ternos, ótimo. Se ele quisesse se vestir de jeans e camisa, mais informal, ele seria um quebrador de regras, um homem à frente de seu tempo, um exemplo a ser seguido.

Com a Kate é o contrário, não querem deixar ela usar o que ela quer. Ficam forçando vestidos e conjuntos em que ela não se sente à vontade, mas que deixam sua imagem melhor perante aos muitos homens com quem ela tem que trabalhar.

Mas Kate é firme, cede poucas vezes, ignora os estilistas, maquiadores e cabelereiros e segue com seu terninho preto e seu cabelo despenteado.

Poderíamos ver isso como um ato feminista, ou não.

Vamos começar falando do terninho. O uso de terninho (que é uma versão feminina do terno) por mulheres começou com a ideia de que, para que as mulheres fossem respeitadas no ambiente de trabalho elas deveriam assumir uma postura mais masculina. Deveriam ser mais duras, mais assertivas, “menos emocionais”, e se vestir de forma semelhante a seus colegas de trabalho. Além do que, o terninho não dá espaço para que a mulher distraia seus colegas de trabalho usando roupas sexy (contém ironia).

Será que a Kate usava o terninho por que ela gostava ou por que ela sentia que ele lhe dava um status de igualdade nas negociações com homens? Nunca saberemos e talvez nem ela saiba. Essa ideia de que para sermos reconhecidas no trabalho nós precisamos ser mais masculinas está tão engrenhada na nossa realidade, que é difícil distinguir se fazemos isso por nós ou por eles.

Eu mesma, sempre fui uma pessoa que preza pelo conforto, sempre gostei de calças largas, blusas mais compridas, tênis ou sapatos baixos. Mas conforme eu fui crescendo nas empresas em que trabalhava, eu passei a me vestir de forma mais conformista, inclusive usei terninhos. Por muitos anos eu criei uma imagem profissional que não era eu. Eu virei um personagem para me enquadrar ao que eu achava que era esperado de mim, muitas vezes orientada por chefes mulheres, que faziam a mesma coisa.

Voltando à série, quando Kate decide colocar um vestido para ir à uma festa, ela chama a atenção dos homens presentes, e fica claramente desconfortável. Eu mesma, dita feminista, fiquei pensando se aquele vestido não era muito sexy para um festa de políticos.

Por que nós mulheres, mesmo que por rápidos momentos, também temos pensamentos machistas. Eles fazem parte da nossa vida, desde o nosso nascimento, são a nossa referência, não conseguimos apagar tudo que aprendemos e vivemos. Felizmente para mim, foi só um momento.

O vestido era bem bonito, vermelho, longo. Mas não refletia a personalidade dela, não era o que ela queria usar. E se era sexy ou não, não importa. O certo e o errado não podem ser definidos através do olhar masculino, talvez nem possam ou devam ser definidos.

Durante a série inteira ela tentou provar que era competente e que não precisava se render às formalidades e definições sociais do que é ser uma diplomata para fazer bem seu trabalho. Porém, ela foi o tempo inteiro criticada e instruída a fazer diferente, a ser outra pessoa, uma pessoa mais adequada. E por isso ela passou a se questionar, começou  a duvidar de si mesma.

E termino esse texto exatamente como eu comecei, me perguntando como se veste uma feminista.

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Estamos viciados em violência?

Comments 7
  1. Falou exatamente o que vive rondando minha cabeça de advogada.
    Obrigada pela dica da série! Já está em minha lista!

  2. Muito bom! Eu senti a mesma coisa vendo a série. E também questiono, como se veste uma feminista!? Do jeito que ela quiser!?

  3. Gostei da honestidade de suas colocações, principalmente quando vc detalha e destaca seu corte social. Mas acho que para sermos feministas não precisamos estar “do outro lado” desse recorte, assim como as feministas que estão, de fato em um recorte diferente do seu, têm elas, a realidade delas, e assim mesmo, são feministas.

    Gostei da sua provocação! E o ponto de referência com a série ‘A Diplomata’, para trazer essa reflexão, foi muito bom!!

    Como se veste uma feminista?Quando vejo as mulheres ativistas nos movimentos sociais feministas, observo uma preocupação de muitas delas que é de não parecer feminina – então eu pergunto: posso ser feminista e feminina? Gosto de me vestir com conforto, não sigo uma tendência absoluta da moda, nem gosto, sou mais básica, mas gosto de me sentir mulher feminina, usando saias, vestidos, acessórios – mas também não abro mão de uma calça e uma bermuda confortáveis – mas, apesar do meu estilo, concordo com a filosofia política, social e jurídica que o feminismo defende.

    Então eu me pergunto: o feminismo precisa passar pelo estilo de se vestir de uma mulher?

    1. Olá Marcya, obrigada pelo seu comentário.
      Esse título que eu dei para o artigo foi justamente uma provocação, porque uma feminista (assim como qualquer pessoa), pode se vestir como quiser. A minha reflexão é o quanto as mulheres conseguem diferenciar quando estão se vestindo de uma certa maneira porque querem ou porque sentem que precisam provar algo a alguém. E muitas vezes é difícil diferenciar, porque as ideias de como uma mulher deve se comportar estão muito profundas no nosso comportamento.
      E é justamente esse questionamento que você sobre as ativistas, de forma geral, não se vestirem de forma muito “feminina”, é impossível saber se elas fazem isso porque gostam do estilo ou porque sentem que precisam desafiar o status quo.
      Em relação ao seu questionamento final, o feminismo está em tudo, não é a roupa que determina se alguém é feminista ou não, mas o processo de escolha sim. Essa é a minha opinião.
      Obrigada pela reflexão!

  4. Confesso que não vi a série, o que não me impede de dar a minha opinião sobre a reflexão acima apresentada.

    E deixo as seguintes questões: como se deve vestir uma mulher ? Como se deve vestir um homem? Acho que é a questão fundamental! Porque o feminismo visa defender e promover a total igualdade de direitos entre homens e mulheres. Igualdade que deveria ter existido sempre.

    Para mim, a resposta é em ambos os casos: como se sentirem bem.

    No entanto, tanto mulheres como homens têm seguir, códigos de vestuário ( ou é conveniente importante que o façam) dependendo da profissão, cargo político, etc.

    Não creio ser regra, que um homem diplomata fosse visto como muito à frente no seu tempo por se apresentar de uma forma informal, de jeans e camisa . Poderia também ser mal visto pela falta de formalidade .

    Assim como, quero crer, que às mulheres que vestem terno fazem-no porque se sentem bem, e isso não lhes tira beleza nem sensualidade, muito menos lhes atribuem algum tipo de masculinidade.

    O feminismo deve ser uma luta de mulheres e homens; e o para nos identificarmos com essa luta não precisamos de vir de um estatuto social mais previligiado, de ter determinada cor de pele.

    E a ênfase no facto de que o homem deve ser bruto, rude, assertivo, não mostrar emoções, só fomentou ainda mais o machismo e uma sociedade ainda muito patriarcal. A pressão para esta masculinidade tóxica nos homens não ajuda.

    1. Olá HUgo, obrigada pelo comentário e concordo quando você diz que o feminismo tem que ser uma luta de mulheres e homens, até porque uma sociedade sexista prejudica a todos, não só às mulheres.
      A minha reflexão nesse artigo não foi sobre a roupa ou o código de vestimenta em si, mas sobre o fato de que alguns conceitos e padrões estão tão profundos na nossa cultura e nossa realidade, que às vezes nós mulheres nos comportamos de um jeito ou de outro por acreditar que aquilo é o certo, quando muitas vezes não há o certo, apenas o que foi ensinado e perpetuado pela sociedade.
      Eu acredito que todo mundo pode se vestir como quiser, mulheres podem usar terno, homens podem usar vestido, cada um faz o que quer, o importante é fazer isso porque você quer não porque você acha que é certo ou que precisa provar algo à sociedade.
      Vestir-se deveria ser um ato de liberdade e não de aprisionamento.
      Obrigada pelo comentário e pelas reflexões!

  5. Olá Dina! Grato pela sua resposta. Concordo consigo quanto aos conceitos ou estereótipos enraizados que muitas vezes nos limitam, e nos fazem ser politicamente corretos mas talvez um pouco moralmente falsos.

    No fundo o que eu quis dizer foi que as mulheres na luta para o feminismo, não têm de se vestir de forma a parecerem mais masculinas. Para mim não faz qualquer sentido, porque uma das razões que contribuíram para o machismo, é exatamente a necessidade de imposição ao homem dessa masculinidade tóxica, de que homem não chora, homem é forte e não pode mostrar emoções, e não pode ter gostos afemininados. Então porque razão as mulheres têm de ir para as manifestações vestidas de uma forma mais masculina?

    A meu ver, uma manifestação pró feminismo, seria mais poderosa feita de saltos altos (isto sem qualquer tipo de machismo, preconceito ou outro que prejudique a imagem e o direito de escolha das mulheres) .

    Portanto, o feminismo não pode ser uma luta de códigos de vestuário, e por vezes leva-se essa luta a um extremo que mais parece uma luta contra o masculino e não uma luta para conquistar uma igualdade de direitos, que deveria ser normal .

    Os direitos de igualdade de género deviam existir sempre, mas homens e mulheres ( que se identificam com o sexo com que nasceram) serão sempre diferentes na sua essência, é isso é que é bonito.

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