O tempo é um deus

Ouve-se apenas o ruído perturbador dos ponteiros. Cada segundo parece doer-lhes, a ele que lhe segura na mão, a ela que desaparece lentamente. O candeeiro abana, espalhando luz pelo quarto, obrigando as sombras a correr, a fugir. Luz, sombras, luz, sombras.

Que horas são?

Ela abre os olhos e procura o som dos segundos, mas a luz não chega àquele canto onde está o relógio pendurado. O relógio está na escuridão, acusando-a e sentenciando-a. O tempo é como um dedo apontado. O tempo faz-se ouvir, mas permanece oculto. O tempo é um deus.

Os olhos dela cruzam-se com os dele e ele sente uma solidão gigante.

Não pode ignorar o cheiro a morte. A morte está ali, num canto qualquer, resguardada pelas cortinas grossas ou pelos claro-escuros que o candeeiro pinta nas paredes brancas, húmidas, desfeitas. Conhecem-na bem, de outras alturas, de outras vidas. A morte espera. Rasteja pelo corpo dela. O quarto cheira a fim e os lençóis magoam-lhe a pele. Custa-lhe respirar, a ela. Custa-lhe respirar, a ele também.

Luz, sombras, luz sombras. Uma dança lenta, descompassada do tom do relógio, encontrando-se só de vez em quando. De onde virá este vento que faz dançar o escuro?

Ele passa a mão pelo cabelo branco dela, ralo, fino, tão forte e negro que foi um dia, e não sabe se se conforta a si ou a ela. Nenhum deles tem mais conforto, nunca mais. Ela implora-lhe com o olhar coisas que ele é incapaz de cumprir. Por isso, ele canta baixinho. Segura na mão dela e canta-lhe. Ela começa a cantar também, a acompanhá-lo, entre o choro e o medo. Talvez se imaginem jovens e a dançar, eles, que agora têm as mãos cheias de rugas e os anos a vergar-lhes o corpo. São inocentes à procura do que não mais existirá, a rezar pelo que já não pode existir. Tentam afugentar a morte, mas cada vez se aproxima mais. Ele vê-lhe o vulto, sente-lhe o odor doce e podre. Eles cantam devagar e baixinho, até que a voz dela se apaga e só sobra o sussurro triste dele. Só ele canta. Só ele acaba a música.

Silêncio.

O choro quieto dele. O choro quieto dele. Ela deitada na cama, sem respirar mais, de olhos surpreendidos. E ele vivo, tragicamente vivo. O relógio alto, cada vez mais alto, os ponteiros a doer-lhe no corpo, na tristeza, na solidão, porque ele continuava vivo. Ele baixa-lhe as pálpebras. Finge que ela dorme. Abraça-se a ela. Não se atreve a largá-la. Aperta-a. Não se atreve a largá-la. Talvez, se a agarrar para sempre e nunca mais a largar, a vida não se transforme apenas em memórias. Talvez, se a agarrar para sempre e nunca mais a largar, o seu corpo não se desfaça no esquecimento. Agarra-a com mais força. Porque se a agarrar para sempre e nunca mais a largar tem a certeza que conseguirá impedir que os ponteiros avancem, avancem, avancem com a vida.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Autonomia

Next Post

Diálogo (da falta dele)

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Com a GULA me Conquistas

Com o seu estilo próprio e vontade de se afirmar no mundo da música, os GULA nascem da vontade de cinco amigos…

Uma Separação

Vi Uma Separação em Outubro de 2011, já sabendo dos cinco prémios em Berlim, incluindo o Urso de Ouro e os Ursos…

Uma boa pessoa

Este foi sem dúvida um dos filmes mais intensos e comoventes a que já assisti. Recomendado para quem deseja…