Desamortalhou a esperança para ver a História ser escrita através da sua janela. De mãos artríticas, arranjou os cabelos brancos e desempoeirou as emoções. Abriu o vidro. A praça estava cheia de mulheres, que é como quem diz: a praça estava cheia de futuro.
Escravas alforriadas do silêncio. Tinham aprendido que o silêncio também podia ser arma. Marchavam em valsa, voo de pássaros ao vento, uma dança que pegava fogo ao mundo.
E, no entanto, nem se mexiam.
Mas imóveis eram tudo.
Imóveis eram uma tempestade. Ninguém diz à tempestade o que é, quem deve ser, do que é capaz. Ninguém diz à tempestade que é errada. Ninguém diz à tempestade quem amar.
À janela, aquelas mulheres que choviam por dentro obrigavam-na a abrir armários cheios de memórias, arejá-las do cheiro a naftalina, voltar a experimentá-las, ver se serviam. A praça estava cheia de mulheres, que é como quem diz: a praça estava cheia de coragem.
Do avesso, com o medo a servir de estribo para a ousadia de serem humanas, de terem direitos. Completas, com o medo a servir de púlpito para a liberdade. Apanágio de ser mulher. Não é à toa que o nosso coração é feito de remendos, penumbras e encantamento.
Uma começou a cantar.
Outra.
Outra.
Outra.
Traziam como bandeira a sua voz. De mãos entrelaçadas como se a guerra fosse travada com abraços. Cada uma delas era uma miríade de mulheres. Eram quem nunca foram, eram quem tinham sido até ali, eram ponte para quem seriam a partir daquele minuto.
E cantaram a noite toda. A noite toda. O mundo inteiro. Uma melodia tão suave que dava nome ao universo.
Ela cantou com elas, as ilusões e os espantos a enfeitar a pele. Foi o primeiro dia em que voltou a sonhar. Porque a praça estava cheia de mulheres, que é como quem diz: a praça estava cheia de revolução.
Gostei muito muito!