Elle

LEFFEST’16: Elle

Paul Verhoeven reconhecido cineasta holandês cria em Elle um retrato fascinante da autoridade feminina, muito graças à sua protagonista Isabelle Huppert. A antrestreia aconteceu no Lisbon & Estoril Film Festival’2016

São poucos os realizadores como Paul Verhoeven (holandês nascido em Amesterdão em 1938), cuja carreira versátil é formada pelos mais inteligentes dos blockbusters ‘alternativos’, a que se dão honras aos seus efeitos visuais alienantes – como em Desafio Total, Soldados do Universo ou Robocop -, até passar uma certa complexidade erótica das personagens muito mais do que o caso adolescente de 50 Sombras de Grey – com Basic Instinct, Steekspel ou Show Girls. Com efeito, em Elle, o cineasta parece retirar elementos de ambos esses dois mundos, criando uma verdadeira apoteose cinematográfica, porventura a derradeira obra-prima de uma carreira que é já bastante longa e que começou nos anos 60.

É que, a ver vamos, Elle segue as pisadas de uma mulher aparentemente indestrutível. Michèle (Isabelle Huppert) é CEO de uma reconhecida empresa de videojogos, centrados em fantasias eróticas no tempo da Idade Média, que não tem tempo para uma íntima vida sentimental e que prefere manter um caso ocasional com o marido da sua melhor amiga, que é também sua colega de trabalho. De um dia para o outro a sua vida dá uma volta de 180 graus, após ser atacada violentamente por um misterioso desconhecido. Enquanto tenta descobrir quem foi o responsável pelo ato de violação, Michèle acaba por entrar num jogo de gato e rato, que mais cedo ou mais tarde poderá ficar fora do seu controlo.

A primeira imagem que vemos de Elle é a tão comentada cena da violação. Ou melhor, temos o ecrã envolto numa negritude, onde só se ouvem os gritos desesperantes da protagonista. Só depois é que a vemos atirada no chão da sua casa, quase como um cadáver fétido. A partir daí, Michèle reage como se nada se tivesse passado, afinal teme ligar para a polícia, porque não quer ver o seu nome novamente estampado nos rodapés televisivos-, muito porque o seu pai fora um temível assassino enquanto ela ainda era adolescente. Cineasta de obsessões e, por sua vez, de provocações Verhoeven coloca Michèle numa constante descoberta pelo culpado, mas também numa re-descoberta dela mesma enquanto mulher, ou seja, confronta-a com a sua psique, mostrando, por sua vez, como “Ela” se enquadra num mundo de relações sociais cada vez mais utópicas e mercantilizadas, simbolicamente familiares a um sistema capitalista.

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Haveriam várias maneiras de contar uma história como a de Elle, contudo o seu cineasta afasta-se de quaisquer modelos representacionais próprios do cinema comercial cliché americano (o argumento de Elle foi recusado pelos estúdios de Hollywood e pelas ‘grandes estrelas’ como Nicole Kidman, Marion Cotillard, Diane Lane, Carice van Houten e Sharon Stone). Verhoeven procura o seu enfoque dramático (ou traumático) nas consequências psicológicas que são um tanto estimulantes, quanto obscenas. A salientar o facto da protagonista não ser nem vitimizada nem punida em relação ao acontecimento, porque na verdade, a trama não gira somente em torno da sua busca pela vingança. O que acontece em Elle é um eloquente trabalho onde finalmente uma personagem/mulher é vista como ser humano que é, com a sua mente a ser um baú de problemas, erros e de algumas virtudes e lições. Aqui, e comparativamente ao trabalho de Mel Gibson com O Herói de Hacksaw Ridge (que também estreou no Lisbon & Estoril Film Festival), não há, fora pleonasmos, heróis. As falhas desta Michèle vão-se acumulando com o passar do tempo, onde não só percebemos a dificuldade que tem em lidar com o seu filho, prestes a se tornar pai, ou com a sua mãe, que anseia casar-se com o seu gigolô e que nunca compreendeu o lado da filha em relação ao passado tenebroso.

Não é que a narrativa de Elle se prenda exclusivamente a um retrato obscuro da vida da personagem principal. Aliás, um dos pontos fortes do trabalho de Verhoeven são os inúmeros sarcasmos (o filme conta com momentos de humor negro interessantíssimos, como a cena em que Michèle quase consegue cegar o seu ex-marido, ou as suas atípicas conversas com a mãe). Ora, temos um trabalho que, por um lado, alcança o incómodo da audiência de forma bastante direta e, por outro lado, temos metáforas que apenas dão a entender alguma coisa, deixando o espetador numa constante atitude e visão crítica, que até reenvia a um certo distanciamento brechtiano.

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Por isso, Isabelle Huppert é o verdadeiro marco deste filme, naquela que é já uma das melhores interpretações do ano. O filme de Verhoeven insiste em desmistificar o papel feminino na sétima arte, ou melhor, procura mostrar como uma mulher não precisa de depender de um homem- no final parecerá mais ao contrário. A sua Michèle até pode ser uma personagem um quanto antipática (isso se tivermos em conta os rudes constrangimentos que a personagem faz os homens em cena passar), mas é porque estamos de frente a um retrato honesto daquilo que ela atravessou, que ganha maior impacto aquando do visionamento das imagens virtuais e pornográficas dos videojogos na empresa que lidera. Michèle nunca dá o braço a torcer, se assim quisermos entender, mesmo que isso lhe saia caro. Como é costume e para quem conhece a carreira da atriz, Huppert mantém uma linha passivo-agressiva na sua interpretação, onde se destaca muita da sua fisicalidade em cena – a mais fascinante quanto destrói o vidro de um veículo suspeito em frente à sua casa, como se estivesse numa dança simbólica de medos -, o seu desejo e a sua desolação enquanto uma mãe e enquanto uma filha.

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Muito curiosamente, se no início do ano assistíamos a O Que Está Por Vir (L’Avenir, de Mia Hansen-Løve), onde Isabelle Huppert interpretava uma professora de filosofia e a construção da personagem era dada a partir das suas fragilidades, em Elle o seu trabalho parte de alguma austeridade para só a seguir contactarmos com os seus pesadelos e as suas difíceis relações quer pessoais, quer sociais. Curioso é também ver um gato negro em ambos os filmes, como se de alguma falta de sorte as suas personagens fossem permanentemente sujeitas.

Nos elementos técnicos destaque claramente para a banda-sonora angustiante de Anne Dudley, que sabe aproveitar-se de muito do suspense à la Alfred Hitchcock e para a direção de fotografia, que privilegia as cores mais frias, mesmo nos cenários onde haveria supostamente uma maior riqueza e explosão de cores, sem nunca cair em excessividades melodramáticas próprias a outros enquadramentos. Elle é um filme perspicaz que se vale inclusive dos elementos na direção artística, como a habitação de Michèle, que é um lugar de algumas exclusões e pode ser muito bem entendido como retrato fiel da prisão, pelo menos na cena em que a protagonista decide mudar todas as fechaduras das portas, para que o violador não regresse.

Enfim, Elle é a longa-metragem com que Paul Verhoeven prova o seu talento nuns incríveis 78 anos de idade e a sua capacidade de levar o público a olhar para um produto único, em que tudo parece se encaixar de forma fluída, sem ser previsível. Insistimos, uma vez mais no desempenho de Isabelle Huppert, que nos faz querer celebra-lo como o melhor desempenho de 2016, até ao momento.

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Isabelle Huppert e Paul Verhoeven no Festival de Cannes
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