História da subjectividade financeira e o dinheiro como ideia

A nossa sociedade é sustentada pela Economia, e a sua progressão está directamente relacionada com a forma como gerimos o dinheiro. Mas qual é a nossa relação com o dinheiro? Será a raiz de todos os males desde sempre? É capaz de corromper qualquer Homem que se deixar cegar? Karl Marx define trabalho (que deriva da palavra latina tripalium, objecto romano utilizado na tortura de escravos e pobres que não pagavam os seus impostos) como ”a actividade sobre a qual o ser humano emprega a sua força para produzir os meios para o seu sustento”. É certo que a maior parte de nós faz dispêndio da sua energia para ser recompensado monetariamente ao fim do mês. O dinheiro é o meio mais corriqueiro para nos sustentarmos. Será que nos deixámos cegar? Se o nosso dinheiro valer menos, será que temos de empregar cada vez mais força para produzir o mesmo sustento? Isso fará sentido à medida que envelhecemos?

Sabemos que apenas 3% do dinheiro é físico e que o restante é electrónico, e isso espelha-se pelo uso de apps para o gerir, que vieram para ficar. Muitos de nós paga uma taxa de gestão de conta mensal bem maior do que qualquer juro apresentado por termos uma conta poupança. Se fizermos as contas, o dinheiro que possuímos em poupanças, que pensamos estar estagnado e seguro, sofre desvalorizações contínuas.

Segundo John Law, economista do séc. XVII, “aceitamos o dinheiro como o meio sob o qual os bens são trocados e não pelo valor intrínseco desses bens”. Tal significa que o sistema monetário não é mais do que uma concepção. Nos dias de hoje, a moeda não tem um valor fixo- é apenas a soma das suas flutuações instantâneas ao longo do tempo. Com a chegada do ano novo, há uma proposição que é verdadeira: a inflação irá ocorrer, com o consequente ‘’aumento silencioso do preço dos bens de consumo’’. Se o algarismo do ano civil aumenta, o algarismo dos preços assim o acompanha, passando os civis a ter menos poder de compra (veja-se o caso venezuelano aqui). A moeda de hoje tem um valor subjectivo, pois é gerida pelos governos de cada país. Cada governo pode aumentar a quantidade de dinheiro consoante as necessidades. Chamamos de dinheiro porque o governo assim o define. Vivemos neste sistema centralizado, e é daí que advêm as oligarquias, a distribuição cada vez mais assimétrica da riqueza, e os escândalos financeiros esquecidos pelo povo passados 5 anos. A moeda não está acoplada a nenhum padrão natural que controle a sua impressão e consequente desvalorização. Esta característica sintéctica da moeda faz que a Economia não respeite a Lei de Lavoisier (não funciona para conceitos anti-natura), onde nada se ganha, nada se perde e tudo se transforma. Essa característica da escassez é de maior importância para um bem: quanto mais raro é, mais valorizado se torna. Historicamente, nem sempre foi assim. ”Será que antigamente é que era bom?”

O sistema de troca directa extinguiu-se, dando lugar a um sistema de troca por itens com valor generalizado. Vários câmbios foram utilizados: arroz, cocos, gado e até sal (no tempo dos Romanos, este produto tinha um valor bastante elevado, pois servia para conservar alimentos e para cicatrizar feridas. É daí que deriva a palavra latina ‘’salarium’’- pagamento pelo sal). Até que os metais substituíram as formas de pagamento antigas. Cobre, prata, e posteriormente o ouro. Durante muito tempo, o ouro foi a melhor forma de armazenar valor e um excelente intermediário para a troca devido às suas características:

Durabilidade- é quase impossível de destruir;

Divisibilidade;

Transportabilidade;

Fungibilidade- cada unidade tem características similares- igual peso, igual valor. É reconhecível pelo seu brilho sedutor e cor apelativa;

Escassez- o ouro é um metal que não pode ser criado mas sim extraído. Como a sua extracção é difícil, a quantidade de ouro varia a uma taxa previsível, o que significa que a sua flutuação é mínima;

Até ao Renascimento, o ouro foi usado como sistema de troca. Devido à dificuldade de transporte de enormes quantidades, as notas de papel emergiram, sempre relacionadas ao seu correspondente valor em ouro, que por sua vez era guardado em reservas. O ouro servia como padrão. Fixava o valor da moeda. Existia uma confiança baseada no ouro. Esta fidelidade para com um recurso natural controlava a variabilidade da moeda e a sua inflação. Este sistema equilibrava-se a si próprio. Vejamos: se um país estivesse em dívida, teria que pagar ao outro em ouro ou equivalente- haveria menos dinheiro no país, os preços baixariam e os salários também. O país seria mais competitivo devido aos seus preços deflaccionados. Do outro lado da moeda, o país que recebia o ouro tinha mais dinheiro, e a inflação e os preços subiriam. A quantidade de dinheiro só poderia crescer se a quantidade de ouro equivalente fosse adicionada à reserva do banco. Com este padrão-ouro, estabelecia-se uma certa homeostasia entre nações, pois as dívidas são limitadas e o conceito actual de hiperinflação tornar-se-ia impossível de surgir.

As trocas comerciais tornam-se mais complexas e as sociedades mais evoluídas. A Economia implementou-se como Ciência, sendo criada para servir as necessidades humanas. Infelizmente, houve uma permutação- nos dias que correm, são os humanos a servir a Economia. É a velha História da Humanidade: um conceito criado com um propósito leal, útil e nobre, acaba ao longo do tempo por ter um efeito contrário, com várias consequências nefastas acopladas.

Até que uma nova variável foi adicionada às questões económicas: a ganância humana e a vontade de poder das nações. A luta pelo topo da cadeia financeira. Esta sede que cega. A luta pelo território e a falta de empatia e entendimento, fraternidade entre nações e respeito mútuo (poderia enumerar muitas mais razões) fizeram despoletar a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Com o objectivo de financiar as guerras, este padrão-ouro foi suspenso durante alguns períodos da História, pois esta estabilidade monetária constrangia o poder económico das Nações.

No período pós-guerra, em 1944, os países reuniram-se e voltaram a relacionar a moeda com o ouro no Acordo de Bretton Woods. Fixou-se que cada onça de ouro valia 35 dólares americanos, e que todas as outras moedas eram convertíveis em dólares, e por isso também passíveis de se converterem em ouro. Foram criadas 3 instituições: o FMI, que teria a função de ajudar a recuperar os países que sofressem de problemas económicos; O Banco Mundial, que ajudaria a combater a pobreza, e a Organização Mundial do Comércio, responsável pela trocas comerciais globais e por resolver desacordos entre Nações. Com estas medidas, em teoria o equilibro restabelecer-se-ia. A moeda é uma medida de valor, e funciona melhor para todos quando é estável e seguro. Em teoria, esta estabilidade deveria favorecer os investidores.

Nos anos 70 houve um novo retrocesso, desta vez irrevogável: o presidente dos Estados Unidos Richard Nixon, com o intuito de financiar a Guerra do Vietname, financiar projectos e cobrir a dívida americana, decide mudar as regras, permitindo ao governo a criação de dinheiro sem respeitar o critério da conversibilidade em ouro. Por uma mera decisão política, em vez de parar com a criação de dinheiro ou de fazer uma reavaliação do dólar em relação ao ouro, decide suspender o vínculo dólar-ouro em definitivo, finalizando o acordo de Bretton Woods em 1973. Até hoje, nada foi ajustado. Consequências? A moeda passou a estar relacionada com a confiança que as pessoas depositam nos seus governos, em vez de estar relacionada com um bem físico e limitado como o ouro. O valor do dinheiro passou a ter uma variabilidade enorme- quanto mais existe, menor o seu valor. A dívida americana atingiu valores incomportáveis. O descontrolo ocorreu, curiosamente, a partir dos anos 70.

Hoje em dia, uma onça de ouro vale mais de 1750 dólares, e este gráfico é um copy-paste da dívida americana, apenas mudam as variáveis dos eixos do gráfico. O ouro tinha apenas a função de estabilizar o dólar. A sua quantidade não mudou significativamente. O que aconteceu ao dólar? Catastrófico!

A inflação não beneficia o cidadão comum. Entrámos num ciclo vicioso difícil de retroceder. Vivemos num tempo de especulação financeira, em que uma agência de rating tem o poder de definir quanto vale a economia de um país. Este conceito de inflação ilimitada não respeita os padrões naturais de crescimento da terra. Atentemos no que este comportamento humano trouxe para a sustentabilidade do planeta, com os recursos naturais que os ecossistemas conseguem criar num ano a serem esgotados nos primeiros 6 meses. O sistema está viciado e descontrolado. O retorno para o padrão-ouro torna-se de difícil execução. Pode-se estabelecer uma correlação com a quantidade de gases de efeito estufa emitidos para a atmosfera: passando um certo limite de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, entramos numa fase catastrófica e o regresso à homeostasia já não é possível. Peixe podre, sal não cura.

Embora existam alguns projectos alternativos, como moedas sociais e comunidades sustentáveis que tentam fugir aos hábitos capitalistas e de hiperconsumismo, é um desafio enorme, enquanto sociedade globalizada, dissociarmo-nos deste modelo financeirocêntrico. É preciso dar passinhos de bebé, criar microeconomias, seguir padrões de consumo mais sustentáveis, e não deixar que o nosso dinheiro, fruto do nosso esforço diário, valha tanto como sal. As pessoas cada vez mais precisam de alternativas que não estejam tão dependentes do sistema monetário centralizado. Estão fartas de esfregar o sal na ferida. Novos hábitos precisam de ser adquiridos- o conceito de produtividade não tem que estar ligado umbilicalmente ao dinheiro. A riqueza de um país não tem que se basear num rating da Moody’s, mas sim na sua cultura e na sua relação com os outros países. O conceito de investimento deve ser em nós mesmos e em aspectos benevolentes e que tragam equilibro ao planeta e às gerações seguintes, não em enriquecer o extrato bancário. Devemos deixar o mundo melhor do que quando o encontrámos.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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